sábado, 1 de dezembro de 2012

Os poetas permanecem jovens

Quero lhes encarregar de um segredo: eu também já fui jovem, mesmo que, na cabeça de meus dois filhos os pais jamais tenham sido jovens. Gostaria lhes encarregar um outro segredo: os poetas possuem uma juventude eterna, assim como os desejos que não se realizam, os projetos maravilhosos, as utopias, os valores que não negamos mais, o direito à justiça, a liberade, a paz e o amor. Leiam os poemas escritos pelos poetas em suas velhices, não encontrarão traço algum de reumatismo ou de anemia. Pois não existem, que eu tenha ciência, poemas velhos. Os poetas continuam jovens, a poesia é seu elixir da juventude, eles não podem envelhecer. Para eles, a idade, ordinariamente sinônimo de doença e morte, não existe.
Os poetas não envelhecem porque não renunciam à esperança. Não à esperança em qualquer coisa, mas à esperança mesma, como institnto, sensibilidade, que não necessita de objeto; portanto, os poetas não vendem ilusões; a poesia corre em seu sangue, assim como o dom de esperar aquilo que não possui nome, o entusisasmo por aquilo que não possui face; eles escutam os apelos de algures. Eles não vendem ilusões, mas sabem que seu sangue mistifica verdades e visões. Deve-se apenas dar-se ouvidos. É somente isso que a poesia necessita. Ela é a arte de não matar as coisas para nosso livre uso, de não dilapidar nossas palavras e nossas histórias para atingir afobadamente nossos objetivos. Ela é a arte de guardar por muito tempo as palavras e as histórias que nos são mais caras, assim como certas pessoas guardam sonhadoramente as bonecas de sua infância. ela é a arte de preservarnas palavras e nas coisas seu poder primitivo, a magia dos nomes, sua capacidade de se transformar e supreender; a arte de morrer lentamente e de deixar as coisas morrerem conosco, sem as destruir em nossa pressa de as superarmos.
Os poetas sabem perfeitamente esperar, e eles não perdem nada. Eles guardam preciosamente as coisas no fundo de si mesmos, eles não tem porque se apressar. A estrela cuja hora chegou brilhará na sua hora própria; o fruto tombará no momento certo. eles esperam, por vezes na alegria. por vezes num aborrecimento mortal, mas graças à espera eles enriquecem suas ideias e suas visões. Não se trata somente de imaginação, mas de pele e carne; pois a poesia não fabrica os sonhos, ela os revela, of faz visíveis, lhes dá corpo; ela os torna certos, irrefutáveis, porque eles são "realizados' no poema.
Os poetas não vendem ilusões. Eles extendem a verdade e dão uma existência efetiva àquilo que ainda não foi alcançado; àquilo que não é mais do que uma intuição, um pensamento. Eles não têm a necessidade de grandes coisas: uma palavra, uma rima, pois a beleza também é assim simples e fácil. É necessário somente confiança nas palavras. Nós devemos observá-los como aqueles insetos que voam ao redor de nós. Se soubermos brincar com eles, tocá-los, podemos fazer coisas maravilhosas; devemos amá-los sem esmagá-los em nossa pressa. Jovens, vocês se apressam demais, dizem que devem matar sua memória, seu belo álbum, suas borboletas, para morrer rapidamente se se aproximar de seus objetivos. Vocês se apressam para se lançarem ao mercado do trabalho e da produção, ao mercado de rivalidades, de nacionalismos e de fanatismos. Dizem que vocês devem matar sua língua, falar uma língua cuja pele é o computador. A pior das coisas da mundialização, é essa língua impessoal que propõem os piores missionários. Nunca se viu alguém viver fora de sua língua, e querem que vocês experimentem isso. Resistam.
matar a língua é matar a história, pois as palavras são também uma história; são elas que nos dão a segurança de nossa vida passada; graças a elas nos entendemos ainda nossos velhos falarem. A morte de uma palavra é a morte de um ser vivente e nós devemos protege-las como espécies raras. O pior da mundialização de hoje é a morte da memória, a vida sem passado. Jamais se viu alguém viver sem memória e querem experimentar isso em vocês. Resistam.
A poesia é também um elemento de resistência. Um pequeno poema possui um fantástico poder de resistir, pois desmantelar a língua e a memoria que o criaram não é tarefa fácil. É por vezes tenra, fina como um fio: mas quem pode matar um fio? É por vezes frágil, pois é sentimento e tensão: mas quem pode aniquilar um sentimento? Quem pode abolir a força sepultada nesse abrigo de palavras?
Vocês podem pensar, talvez, que os poetas são pastores de uma outra época, seres apaixonados numa época que não valoriza a sentimentalidade. Talvez vocês pensem que a poesia se tornou, com o tempo, o feito de uma seita misteriosa e obscura. Que dirão vocês se aprenderem que os poetas também aguardam a inspiração dos computadores, que sua inspiração mudou com as descobertas da astronomia? Que dirão vocês ao aprenderem que os nomes são tão poéticos quanto as palavras, os automóveis tão belos quanto as árvores, que tudo o que existe, queiramos ou não, é um ser poético?
Imagina-se que nossa época não seja propícia à poesia; mas o que dirão ao aprender que nenhuma outra poesia encontrou tamanha abertura ao imaginário? Basta considerar a astronomia para ver o quanto o livro do céu é esplêndido, tanto quanto qualquer outro arsenal poético; o quanto a epopeia do espaço é a maior das epopeias. Com o desenvolvimento da ciência, o mundo se preenche de intuições. de probabilidades, de cálculos futuristas. Quer dizer que ele se torna muito mais poético, muito mais imaginativo que a própria poesia.
Hoje em dia a ciência é muito mais supreendente, bem mais extraordinária que a poesia; na competição entre ciência e poesia a imaginação não é mais que o apanágio da poesia. O real excede a poesia, que parece lenta e falível? A poesia não deve se cumprir no seu domínio próprio, sem mísseis nem satélites, o domínio da identidade humana ferida, perdida, excedida tanto pela ciência quanto pela própria realidade? O mundo se torna virtual ao ponto de esquecermos o verdadeiro, esquecermos o sofrimento humano, esquecermos a necessidade simples de amor e solidariedade. Em tudo aquilo que necessita uma longa e tenra gestação, encontra-se a arte da poesia e seu fim. É verdade que o mundo contemporâneo detesta a poesia, diríamos mesmo que ela a despreza, pois, cego pelo prodígio do universo, o mundo contemporâneo despreza a própria humanidade, que ele crê lenta, retardatária à suas descobertas; o homem possui, a seus olhos, menos importância que suas ambições e conhecimentos. Talvez por isso a poesia nos seja necessária, e ainda mais hoje em dia. O ser tem necessidade de cuidados pacientes. O ser, necessitando de cuidados pacientes, tem toda humilhada quando se pede que seja apenas uma força no mercado de trabalho e de produção, sempre visto como um instrumento para a eficiência duvidosa, e mais duvidosos ainda, tornam-se os resíduos emocionais e existenciais que herdou-se de tempos anteriores à revolução dos robôs.
Eu escrevo, neste momento, de uma cidade que viveu mais de vinte anos de guerra civil. Eu vi como o indivíduo se torna assassino pelo simples fato de possuir um fuzil; como a menor diferença de nome, pronunciação, lugar de habitação, são suficientes para justificar a agressão. Eu vi como os princípios, os valores, os nacionalismos, se tornam programas de eliminação do outro; como as pessoas comuns, presas no fluxo da ferocidade, se tornam colecionadoras de membros humanos . Em sua ferocidade, a humanidade é capaz de ser imperdoável e destruidora de seus valores. Daí vem a necessidade de uma arte inocente que, aconteça o que acontecer, não se torna um instrumento de sangue. Que seja a música, a arte, ou a poesia. Quando Hölderlin fala da inocência da poesia, talvez queria dizer qualquer coisa desse tipo. Temos necessidade de uma arte não agressiva; de uma arte frágil, delicada, incapaz de se transformar em trombeta de guerra. A poesia será uma mercadoria vital, misturada ao leite da criança, aos medicamentos, à pequenas doses cotidianas tratar dos impulsos brutais, ferozes, agressivos do homem.
Os poetas permanecem jovens como os desejos que não se realizam e o poema é antes de tudo um desejo quente e conreto que, de certa maneira, se realiza em palavras. O poema é geralmente impulso (élan), fervor, paixão, canto pelo outro, pelo amigo, pelo companheiro. Brutal, mesmo brutal, ele purifica a ferocidade; atroz, se ele chega ao ser, ele purifica o ódio. Permanece ainda, em todo caso, uma to de amor, ato de inocência; mais ainda, é promessa de um começo: à toda idade, com todo poema, começar é possível. Assim, jovens gentes, podeis começar.


BEYDOUN, Abbas. Les Poètes Restent Jeunes. In. Lettres à la Jeunesse. Dix poètes Parlent de l'espoir. Paris: Librio, 2003.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

É para se apaixonar?

O problema que em geral se instaura nas mentes - embora digamos ser no coração -, é que a paixão, as paixões, são muito fortes, arrebatadoras. Sobre a paixão não há dúvida. Se estamos apaixonados, estamos apaixonados. Sorri-se pela mera causa de se saber diferente.
A paixão, como se sabe, vem da problemática grega do pathos. As pathos humanas, as paixões, são também aquilo que causa a doença. Daí o termo patológico, tão usado por nós. Quer isso dizer que a paixão é uma doença? arrisco dizer que não. Quer dizer, antes, que a paixão é uma questão de potência, de afetação. A paixão é um afeto, é algo que move sem, necessariamente, ser movido. Pois a paixão é estática, imóvel, algo comprovável em sua própria certeza. 
A paixão é, assim, cômoda. Sobre o que se tem certeza não é necessário pensar. Por isso as paixões, como as doenças, fazem mal, definham e se alguém acha a paixão um grande desafio, ou mente ou é inocente. Pois o único desafio da paixão é superá-la.
A paixão é a condição ilimitada da vontade. Não requer a intenção da própria vontade, ironizando o desejo que sentimos quando dizemos "estou apaixonado". Nesse sentido, o amor é muito mais fácil e, por isso, tanto comum e simples. Poiss requer a própria intenção, de se querer, voluntariamente, gostar de alguém. Apaixona-se, sempre, por uma imagem involuntária, incosciente. Por aquilo que o outro oferece e que pensamos nos faltar. Já o amor, que por sua simplicidade deve ser o próprio gostar, é a vontade de voluntária de criar sobre o que não se sabe, descobrindo o indesejável no querer. 
"Eu gosto de você", dizemos, arriscando parecer ridículos. E o que é a vida de fato, senão dar-se ao ridículo. Ridículo sim; aquilo que vem do riso, risível. Mas é assim que se escreve a única história que merece ser contada: aquela de todos os nomes. De nomes que se cruzam, se apresentam, se conhecem. Se gostam ou não se gostam. E riem de si.
Quando não há dúvida, há só o coforto, e os conformados.
A paixão se torna, assim, motivo de choro. Eu, particularmente, respeito mais minha risada.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Contra

É impressão minha ou o que as pessoas não entedem, de fato, em Nietzsche, é que a transmutação dos valores (e vale dizer que todo nietzschiano quer mudar os valores dos outros e não os deles mesmos), é somente um resgate daquilo que há num cristianismo primitvo que nós esquecemos?
Mas sua ética, luterana, impositiva, levou ao que levou. A vontade de potência, às vezes traduzida como vontade de poder, impera como um todo-poderoso numa vida que é, e só pode ser, incerta. A aparente segurança na vontade de algo maior só pode dar certo quando há dúvida. Pois o que é do amor e da fé, e da própria vida, algo senão do que a dúvida de si mesmo, o que leva a um movimento de constante superação e mutação na busca não de uma certeza, nem de uma segurança, mas de uma facticidade?
Nietzsche, no seu imperativo de pseudo profeta, pregou uma crença como qualquer outra e foi dinamite porque previu a própria inacessibilidade de sua filosofia, destruindo-se a si mesmo (a dinamite não destroi nada se não destruir a si mesma). Mas deixou a maganimidade que são as considerações intempestivas, ou extemporâneas. Principalmente no que diz respeito à história, está ali presente a observação pontual de que é preciso esquecer a própria história para se lembrar da derrota.
Por isso os verdadeiros nietzschianos são os mais difíceis de se encontrar. São pessoas muito semelhantes àquelas que estudaram a história das religiões com afinco. Se por um lado a humildade é, por vezes (de acordo com seu próprio mentor), má conselheira, nunca se esquecem de que ela está em jogo. Exatamente porque seu valor, assim como todos os outros, são mutáveis. Nietzsche, dizem seus biógrafos, foi uma pessoa extremamente agradável que chegava a mentir (humildemente), para não desagradar os outros. "Que bem faria eu, em dizer a verdade a certa pessoa, destruindo uma atitude que mal algum causaria a outros?", chegou ele a dizer em certa situação.
Bom exemplo dos maus-nietzschianos (mesmo que não declarados), se vê nos ateus, agnósticos e neo-pagãos, que atualizam (crêem eles), as críticas primitivas às religiões dominantes. Ou tudo é explicado pelo homem, dizem uns, ou tudo é explicado pela natureza, dizem outros. Afinal, Deus está morto. A risível crítica que se apresenta não passa, entretanto, da má resolução com o superego paterno. Algo que Freud, como bom nietzschiano, englobou em sua teoria geral, tão falível quanto qualquer outra. A crítica à humanidade e a resolução dos problemas à vontade, senso comum entre os jovens burgueses que criticam as responsabilidades que eles não entendem e acusam de sujeições, é não só datada quanto em seu próprio momento histórico, burra. É apenas mais uma parte do processo discursivo que engloba certas pessoas numa dinâmica que lhes diz que são capazes de tudo, inclusive de sua própria libertação, simplesmente se quiserem.
"Cai-se prontamente em estado de êxtase diante do belíssimo som convenientemente anunciado pela propaganda". Isso, que ocorre com a música ligeira, segundo Adorno, acontece com a imagem que vendem de nós mesmos. O fetichismo do eu, presente naqueles que não cederam à depressividade da sociedade contemporânea, prega o absolutismo de noss capacidade própria a partir do momento em que quisermos. É isso que origina, por exemplo, a visão dos jovenzinhos que, aos 20 e poucos anos, ainda que num emprego de merda (se é que são empregados), creiam-se senhores da própria vida. Afinal, se não vejo a conta do cartão de crédito (sou esperto o suficiente para conver meu pai a abrir uma conta dependente), de ninguém eu dependo.
São esses "os moços moderninhos, que em toda parte se sentem à vontade e que têm capacidade para tudo: é o estudante de escola superior ou faculdade, que em qualquer ambiente social está disposto a tocar jazz mecanicamente para os demais dançarem ou ouvirem [...] Este tipo de 'moderninho' se apresenta como o independente que assobia descontraidamente, contra todo mundo. Mas, no fundo, a melodia que assobia é a que todo mundo canta, e os seus estratagemas constituem, mais do que invenções do momento, experiências acumuladas no contato com os objetos técnicos impostos [...] As suas improvisações são sempre gestos de hábil subordinação àquilo que lhe é ditado pelos organismo dirigente". Por isso os moços ainda são, apesar de sua docilidade, machistas e as moças, apesar de sua pachorra, misóginas.
A transmutação dos valores não quer dizer adaptar seja o que for, a um argumento que faça mais sentido para o que queremos. Pelo contrário, envolve uma sensibilidade tão tirana quanto a razão, porém necessária. O resto, é simplesmente egoísmo burro. Deixemos que, de aparência, vivam os pintores do Renascimento.

domingo, 28 de outubro de 2012

Aquiles

No sonho, eu me encontrava num sítio conhecido, dos avós de um amigo de Americana. A disposição das casas e do terreno, entretanto, estava invertida.
Não sei quem eu acompanhava, ou talvez era ele quem me acompanhasse. Era um rosto conhecido, seguramente, mas que não consigo recordar. Homem mais velhos que eu, grisalho, da minha altura e magro, a não ser por uma sutil barriga de cerveja. Era, pelo que o sonho deu a entender, um zóologo, ou pelo menos tinha a zoologia como uma de suas ocupações.
No entanto, estávamos no sítio não desempenhando qualquer ofício, mas, como é de costume quando viajo para o interior, simplesmente passeando. Quando o Sol se pôs, precisamos limpar certas partes do terreno, algumas madeiras velhas e instrumentos de roça que se amontoavam no canto de uma das casas. Como é de costume, havendo a quantidade certa de calor, humidade e sombra, diversos animais se encontravam escondidos entre as toras. No espaço entre eu buscar qualquer coisa, ou tomar uma água, quem sabe, dentro da casa principal, meu acompanhante já havia limpado quase tudo, faltando apenas uma espécie de máquina cuja imagem não consigo recordar. Algo semelhante a um moedor de cana, desses presentes em barracas de feiras. Sendo a força de meu amigo, muito inferior à necessária para levar a máquina sozinho, me pus em direção a ele, após seu pedido de ajuda. Foi quando vi, reunidas num pedaço de chão, as cobras que ele havia retirado do meio da madeira. 
Eram dois grupos de cobras: um de cobras d'água, longas e esguias, inertes, mais parecendo peixe (talvez fossem peixes e não cobras), e outro grupo vívido, de pequenas cobras verdes e amarelas, pequenas, muito pequenas, emboladas entre si e agitadas. A visão me causou descoforto e arrepio instantâneos, mas contornei-as, pondo-me em direção à máquina.
Segurando bem na engrenagem, levantei a máquina com a ajuda de meu amigo e fomos em direção à casa principal, onde provavelmente alguém daria uma olhada na engrenagem, consertando-a ou vendendo-a, não importa.
Foi quando uma das mãos de meu amigo escapou da borda da máquina, e estancamos na caminhada, ambos com esforço, ele para recuperar a pegada e eu para compensar seu braço solto. E foi quando percebi que havia parado, descalço, em cima das cobras verdes, que se agitavam em volta de meu pé. Com meu grito de pavor, meu amigo recuperou a mão perdida e batemos em disparada, com grande força, em direção à casa, onde deixamos, finalmente, a engrenagem.
Sentados, assustados e cansados, senti minha perna dormir, e uma tontura me atingir. A cabeça pesou e os olhos começaram a se fechar, Uma estranha sensação de bebedeira me tomou, sendo seguida por enorme desconforto na perna direita. Neste momento fraquejei e me pus em pé, tentando recobrar algum controle. Mas levantei somente para ver que havia sido picado, por uma das pequenas cobras (cuja espécie, no sonho, se chamava "Llama"), no calcanhar. Exatamente no calcanhar. 
E fui avisado por meu amigo, de que não conseguiríamos o soro anti-ofídico necessário a tempo.

domingo, 14 de outubro de 2012

Beirute reivindica seu único santo padroeiro



"No dia 23 de abril de todo ano, os ingleses celebram o dia dedicado a seu santo padroeiro. Mas o verdadeiro São Jorge viveu em Beirute, onde o dragão foi morto. Esse extrato do livro mostra que a figura lendária ainda é parte da vida do povo libanês".

Meu tio Makhoul não acreditava em destino. Costumava sempre dizer: "Um homem pode sempre colher o que plantar”; enquanto meu outro tio, Abu Saadeh, declarava que "O homem não pode escolher seu destino... Está tudo escrito".

Quando a mulher de Abu Saadeh decidiu, num dia chuvoso, ir ao vilarejo vizinho de Abu Amha para dedicar votos na Igreja de São Jorge, o tio Abu Saadeh não a impediu, dizendo "Deixe-a ir. Ela terá o que quer que seja que o destino decidiu para ela".

Não tendo ela retornado após o crepúsculo, meu tio não saiu a sua procura, mas confessou sua preocupação de que "Talvez ela tenha sido presa para Abu Amer, a hiena".

Finalmente ela retornou, completamente encharcada, para nos contar sua dramática Aventura sobre como havia sido seguida o caminho todo, à distância, por Abu Amer. Estava convencida de que a hiena não se aproximaria pois "Mar Jiryus – São Jorge – a protegia desde a igreja aos degraus de sua casa”.

Desde então, a imagem de São Jorge cintila em nossa imaginação. Desde a infância nós acreditamos em seu poder, nosso próprio protetor contra todo mal: hienas, ladrões e maus olhos – ele era nosso patrono.

Anos depois, quando a guerra civil estourou e chegou a Mina Al Hosn, todos os hoteis, inclusive o de São Jorge, foram convertidos em baricadas.

Um dia eu fui visitar um amigo que vivia nessa área. Após cumprimentá-lo entre o barulho de canhões e foguetes, ele me olhou e disse sarcasticamente: “Parece que essa batalha é entre São Jorge de um lado e Al Khadr de outro".

No dia seguinte, eu vi fumaça vindo da area e fui checar meu amigo. Após muito tempo eu o encontrei sentado com seus parente e amigos no porão de uma velha casa. Então perguntei: "Digam-e meu amigo… quem venceu a batalha, São Jorge ou Al Khadr?" *

"Infelizmente o dragão"- respondeu ele entre os escombros.

São Jorge (Mar Jiryus em árabe) também conhecido, tanto entre cristão quanto entre muçulmanos, como Al Khadr – “o grande” – foi na verdade um libanês que viveu em Mina Al Hosn , em Beirute, no mesmo lugar onde o Hotel São Jorge foi construído.
Naquela época um dragão costumava aterrorizar os habitants da cidade periodicamente. O povo implorava ao governante para que cedesse à demanda da criatura para que entregasse sua filha como preço para a liberdade da cidade.
A princesa seria sacrificada em Bab As Serail, o portão leste da cidade. Mas São Jorge a resgatou e matou o dragão próximo ao golfo que, até hoje, leva seu nome.
Por essa razão, São Jorge ou Al Khadr, é considerado o único santo nacional para todos os cidadãos de Beirute, tanto cristãos quanto muçulmanos.
A chave para a adoção de São Jorge pelos ingleses é o cirstianismo e a presence cruzada na região.
Comumente, crê-se que São Jorge nasceu em Lydda, Palestina, e atingiu a alta patente do exército romano no qual serviu na Britânia. Tendo se tornado um cristão distinto, foi martirizado sob Diocleciano, em 23 de abril de 203 d.C. Dia ainda celebrado na Inglaterra como o dia de São Jorge após Eduardo III tê-lo proclamado santo padroeiro.
Mas não foi até o quarto século d.C que o primeiro monumento em honra ao mártir surgiu, tendo sido erigido no Líbano.
A mãe de Constantino, o primeiro imperador cristão, erigiu uma pequena coluna de marmore branco numa antiga capela Bizantina, no local onde o dragão foi morto.
Os cruzados construíram uma capela maior, transformada em mesquite em 1661. Agora a mesquita de Al Khadr ainda mantem as ruínas da capela cruzada do século XII.
 
Salam al Rassi. An Naas Bin Naas

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Quando um governo age como uma tribo, é necessário um pastor para seus burros.


Eu trabalhei por vinte anos como empregado em diversos departamentos governamentais no Líbano. Durante este tempo, eu nunca recebi um sinal de apreciação ou prêmio, ou mesmo uma promoção simplesmente porque eu me recusei a ser um protégé de um governante ou homem do clero.
Eu segui o conselho de meu tio, que costumava alugar burros (mkari), e sempre dizia: “Não ate seu cabresto na manjedoura de políticos, pois uma vez que você o faça, eles o considerarão fraco”.
Como eu não possuía nenhuma conexão com gente influente, eu costumava carregar não só o fardo do meu trabalho, mas também daqueles que eram mais altos do que eu em status, ainda que muito menos inteligentes.
Eu descobri que alguns empregados civis do governo não assumem qualquer responsabilidade uma vez que se consideram os verdadeiros “filhos do governo”. Diferentemente do resto dos oficiais e empregados, eles costumavam trabalhar de acordo com a regra que diz: “Ao invés de resolver um problema, passe para outra pessoa, até que Deus dê conta”.
Entretanto, eu costumava me consolar toda vez que me lembrava das palavras das velhas pessoas que na minha cidade costumavam repetir: “Uma pessoa digna deve ser como o sempre verde carvalho que uma vez cresceu na praça de nosso vilarejo e costumava atrair o gavião para o seu topo e os coelhos selvagens pastando em sua sombra”. Mas eu me sentia e continuava a sentir-me triste toda vez que me lembrava de que forma os turcos haviam cortado aquela árvore antes que fossem expulsos de nosso país pouco depois da Primeira Guerra Mundial.
Um dia, um cidadão entrou em meu escritório para perguntar sobre o destino de um arquivo, que me havia sido enviado naquela mesma manhã de outro departamento. Enquanto lia, descobri que havia sido passado de um oficial a outro vinte vezes. Foi surpreendente descobrir que qualquer um dos oficiais poderia ter terminado a autorização e salvo o pobre tipo de vinte viagens ao ministério.
Após ter escrito meus comentário sobre a petição que eu havia datilografado, eu mesmo levei o documento à instância maior, fiz com que fosse assinado, levei de volta à minha mesa, registrei o documento no livro oficial e finalmente levei ao homem que esperava e observava meus movimentos com surpresa.
Ele me agradeceu e, com sinais de assombro em seu rosto, disse: “Posso lhe fazer uma pergunta?”.
“Claro” – eu disse.
“Eu gostaria de saber qual é seu cargo aqui”.
“Sou pastor de burros” - eu respondi .
“O que quer dizer com isso? Não entendi” , perguntou o homem.
“Você tem tempo para ouvir uma curta história?” – eu disse. “Sim, tenho todo o tempo” – ele respondeu.
Então eu contei a história:
“Uma vez, um homem procurou refúgio numa tribo. O líder da tribo o acolheu e o apresentou ao restante do clã.
‘Este é o Sheikh dos Árabes, Hmaydan. E este é o líder da tribo Shiwan. E este é o príncipe de nosso povo, Abu Swaydan’.
Então todos fitaram o homem e perguntaram: ‘E vós, quem sóis?’
‘Eu sou o pastor de burros. Eu soube que necessitavam de alguém que levasse vossos burros ao pastoreio... então aqui estou eu’.
‘E como sabias que precisávamos de alguém para pastorear nossos burros?
‘Bem, se cada um de vós sois ou Sheikh, ou líder, ou Príncipe, quem haverá para ser o pastor?’”
Quando eu terminei minha história o homem olhou para mim e disse: “É verdade”. E emendou: “Quando o governo age como uma tribo, com certeza precisa de alguém que leve os burros ao pasto...”.

AL RASSI, Salam. An-Naas Bin-Naas

domingo, 5 de agosto de 2012

Teses Cabalísticas sobre a Confiança

1. Pessoas sem vícios não são confiáveis;
2. Pessoas sem preconceitos não existem. Por isso as que se pensam como tal, com certeza não são confiáveis;
3. Pessoas 'boazinhas', são boas por algum motivo, que diz respeito somente a elas. Não confie!
4. Quem possui um cachorro que não obedece, não possui autoridade alguma. Sob qualquer pressão elas cedem. Não merecem, por isso, sua confiança;
5. Greve de fome é algo por demais violento. Assim sendo, a não-violência de Ghandi foi relativa. Cuidado com os pacifistas contemporâneos.
6. Quem ama o feio, possui algum interesse. Quem confunde atração com beleza ou é inocente ou é falso. Por via das dúvidas, não leve muito a sério.
7. Como disse Burroughs, as mulheres mais baratas se tornam, com o tempo, as mais caras. Nada mais precisa ser dito.

Sinais Honrosos Sempre Aparecem na Face de Homens Honrosos

O Sheik Abu Ali Sayyagha era um dos homens mais respeitados de seus dias. Ele era capaz de, quando fosse que encontrasse alguém pela primeira vez, adivinhar que tipo de pessoa esse alguém era: estúpido ou esperto,  generoso ou avaro, honesto ou não. Simplesmente mirando os rostos, uma ciência naquele tempo conhecida como fisiognomia.

Antes que carros fossem feitos, o Sheikh se encontrava um dia viajando a pé de Hasbayya a Jdeidet Marjeyoun (Sul do Líbano).

Quando ele atingiu a intersecção de Souq El Khan, o Sheikh encontrou um homem montando um burro indo na mesma direção. Quando o homem se aproximou dele, o Sheikh mirou sua face e disse a si mesmo: “Eu não gosto dele... não é um homem honesto”. O homem desmontou de seu burro, correu em direção ao Sheikh e perguntou: “Para onde te diriges?”.

“Jdeidet Marjeyoun”, respondeu o Sheikh. O homem disse, então, em bom som: “Que sorte tenho eu. Também para aí me dirijo”. E então insistiu para que o Sheikh montasse no burro. O Sheikh hesitou e pensou por um momento: “Como pode tão nobre gesto vir de alguém que me parece de tal modo desonesto?”. E pensando isso ele olhou novamente para o homem somente para ver sinais da desonestidade em seu rosto.

O Sheikh se desculpou de uma forma gentil dizendo: “Não, obrigado... Mas eu prefiro caminhar”. Mas o homem insistiu: “É impossível que caminhes enquanto eu monto” – e disse mais –  “Alguém que conhecemos pode passar por nós e se impressionar com quão rude e grosseiro eu seria. Não, não, deves montar, eu insisto”.

O Sheikh finalmente montou o burro, apesar de sua vontade. Toda vez que ele parava e ameaçava desmontar, o homem se punha em seu caminho ameaçando rasgar o abdômen do burro com sua adaga.

Durante o percurso o homem tagarelava sobre sua devoção e respeito aos homens do clero, algo que começou a preocupar o Sheikh ainda mais: “A mim esse homem me parece infernal, mas seu comportamento me mostra que ele é um homem de honra. Acredito que eu tenha um problema aqui. Talvez eu precise reconsiderar, de agora em diante, a maneira que eu julgo as pessoas. Se meu julgamento deste homem estiver errado, então talvez eu tenha julgado mal outros… e esse é um problema sério porque então, eu talvez perca a confiança das pessoas em mim”.


Chegando em Jdeidet Marjeyoun, o Sheikh desmontou do burro e foi-se embora…

Salam Al Rassi
O homem correu atrás do Sheikh dizendo: “Mas Eminência, não me pagaste a taxa do burro…”. O Sheikh perguntou: “Sim, é claro, quanto quereis?”. O homem respondeu: “Meio Majidi”.

 O Sheikh fitou o rosto de homem e lhe disse: “Escutai, meu amigo. Somente a verdade prevalece no fim. Eu sabia que tipo de pessoa és desde a primeira vez fitei vosso rosto, mas me preocupaste sobre o modo que leio as pessoas...” – e continuou – “Aqui está um Majidi completo e estou muito feliz que eu não estava enganado a vosso respeito”.

Salam Al Rassi. Li-alla Tadhi (Ainda que se percam).

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Pense o que quiser

Superar a si mesmo é uma questão puramente ética. Superar aos outros, é uma questão moral. Concluam.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Quisera minha voz

Quisera minha voz,
Só para cantar fosse.
Ou nomear.
Os pássaros falam cantando.
Mas eu, tão ofensivo,
quando cala o desafio
falando sou,
o cruel que condeno.

Quisera minha voz
Só para cantar fosse.
Ou para criar nomes.
Nomes e coisas.
Coisas de pássaro,
coisas de flor.
Pois nomes já têm
as coisas de dor.

Palavras coisas, nomeadas.
Nomes novos,
coisas novas.
Quisera eu, a voz
nomeasse, atroz,
as coisas que eu nem sei.

Quisera minha voz,
Só para cantar fosse.
Ou declamar,
em versos, falar.
Versos de nomes,
só nomes quisera
minha voz declamar.

Os pássaros só falam cantando.
Quisera minha voz,
sem o problema atroz,
da distância da alma à língua,
só para cantar fosse,
Ou declamar,
em versos, falar.
Coisas de pássaro, coisas de flor.
Os pássaros falam, cantando.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Manifesto


Encontrado numa folha amassada num albergue da juventude, o manuscrito com certeza escrito por alunos brasileiros, foi passado a um ex-aluno da PUC-SP - atualmente desempregado - por um traficante marroquino em Paris. Certos trechos estão rasurados e ilegíveis. Além disso, o manifesto dá indícios de uma continuação, provavelmente perdida, dado que conta o estudante, que ele e o traficante marroquino usaram - pelo pouco que ele se lembra - a folha anexada para bolar um baseado.

"Somos herdeiros diretos da Revolução Neolítica, da Reforma Protestante, da Comuna de Paris, Revolução de Outubro, Primavera de Praga, Maio de 68, Woodstock, Diretas [rasurado]; contemporâneos dos irmãos árabes em sua primavera. Esta herança se expressa diretamente nas ricas manifestações culturais de alto teor político-engajado-reivindicatório de corrente estrutural-estruturante-estruturada como o [um longo trecho rasurado se segue, possivelmente citando outros movimentos populares] e os diversos maracatus de baque-virado da Vila [nome ilegível], berço do samba; vagamos por muito tempo no limbo dos não-lugares, do não-pertencimento e não acolhimento, por parte da sociedade, de nosso devir revolucionário-insurgente consequencia de nossa vontade de potência..

Por muito tempo ficamos à mercê do autoritarismo superegóico encarnado na figura paterna, recorrendo somente ao seio maternal em sua essência edípica. Hoje, o clarão da aurora resplandece no horizonte.

Nossa luta, que emerge do próprio seio da luta de classes, reivindica o alto e bom som dos estudantes, secretários e faxineiros. E reivindicamos esse direito inalienável de gritarmos e nos expressarmos enquanto tais: estudantes, secretários e faxineiros. É nossa postura de únicos-proprietários que nos permite ultrapassar a barreira das classes e suprir o emprego dos trabalhadores garantindo bitucas e latas de cervejas vazias suficientes, atitude límpida e branda reprimida duramente pela reitoria, aparelho opressor, moralista e católico.

Não nos curvamos! Como o Messias que chega pela porta estreita para a redenção do Homem e também tal qual a nobre fênix, renascemos das cinzas de nossos baseados para acusar, delatar, apontar com o dedo em riste, a hipocrisisa de todos os anti-democráticos, os que querem punir, cercear, policiar; todos os que dizem que não concordam com a nobre e justa não-causa de nossa geração, e nos impedem de tornar nossas vidas grandes obras de arte e grandes narrativas.

Adotando autogestionariamente – pois a autogestão é a gestão do único – uma postura insurgente-revolucionária, lutamos por uma universidade pública e intempestiva, fechada aos fascistas, aberta aos que lutam pelo Bem, pela Vontade, pelos devires, pelos desvios, pela diferença, ainda que a realidade mostre que somos todos cada vez mais iguais

Filhos [rasurado] do mundo, uni-vos!"

O manuscrito se interrompe aqui.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

À Godot

Fomos feitos da espera. E a espera é nossa meta, porque é nossa origem. Nossos pais, um dia, nos esperaram. No ventre originário de todos os universos, enquanto nos esperavam, esperavamos a hora de nascer, ato ao qual responderíamos com o choro.
Talvez por isso fique para sempre o medo da espera. Sabemos que no fim da espera podemos chorar, Na língua portuguesa criamos a saudade, que é um embuste para espera. Gloriosa invenção! Em geral, quando nos encontraos no limite da espera ansiosa, lembramos todas aquelas coisas que no acariciam a memória como seda, fria e leve, uma brisa que nos lembra que a espera também vale a pena, pois somente porque um dia esperamos fomos capazes de armazenar todas aquelas vidas que nos voltam pela saudade.
A espera só tem começo. Não tem fim. Se os fios da espera acabam, devemos, tal qual Penélope, desfazer o emaranhado bordade com a face dos nossos amores. Somente para recomeçar outra vez. Pois a espera é ela mesma, a meta.
Só aos desesperados cabe a esperança. Por isso espera e esperança são coisas diferentes. A esperança foi a última a sair da caixa maligna de Pandora. Mas quem a abriu foi a espera. Por não saberem esperar, Adão e Eva provaram do fruto proibido.
Esperar não leva à inação. Esperar é um propulsor. É a espera que me leva além. Pois quem espera é impaciente. E quem é impaciente se precipita. Quem espera é confiante, não esperançoso. E mesmo que o seja, e desesperado. É de um desespero diferente, é um desespero metodológico. É-se desesperado não porque já não se tem fé, mas porque é o único meio de comprová-la. É o desespero cínico, que se engana somente para se mostrar capaz.
A espera é alheia ao tempo, mas subordinada à intensidade: os dias podem passar como segundos, mas serão os segundos mais dolorosos. Por isso, esse que espera desesperado, faz jus à sabedoria dos antigos segundo à qual ninguém pode ser digno de felicidade, pois essa só existe como hybris. Este, no entanto, não sabe que é feliz. Pois a felicidade nos cabe somente no ponto em que não nos estava destinada. A Justiça é sem nome, e é nesse não-saber da felicidade, vinda da espera, que fazemos jus à magia da Liberdade. "Unicamente conhece um ser humano, aquele que o ama sem esperança"
A espera é a meta, porque é como os ajudantes dos livros de histórias infantis, ou como os bizarros personagens de Kafka, ou como os seres cuja natureza se desconhece nos mundos de Tolkien: são os seres esquecidos no fim da história. Mas continuam em nós, mesmo como esquecidos.
A espera alimenta-se do caráter destrutivo que vive não do sentimento de que a vida vale a pena ser vivida, mas de que o suicídio não vale a pena. A espera é a meta porque ela mesma é uma armadilha. É algo a ser vencido, somente para que esperemos outra vez. Porque toda espera é um ensaio para a espera final.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

On being english...

Thomas Mann, quoted by J.B. Priestley:

"'[...] England's attitude to power is quite other, and incomparably more natural and straight-forward than the German attitude. Both parties understand something quite different by it - it is the same word with a wholly different meaning. To Englishmenpower is in no way the darkly emotional concept as viewed by Germans: power, in English eyes, implies no emotion - the will to power is a German invention - but a function: they exercise it in the gentlest and most unobtrusive manner, with the least possible displau, and safeguarding as much freedom as feasible, for they do not believe that power is a proclamation of slavery, and are therefore not slaves to power themselves"

PRIESTLEY, J. B. This Land of Ours. In: PRIESTLEY, J. B; GIBBS, Sir Philip: GUEDALLA, Philip; MAUGHAM, Somerset; and others. The English Spirit. London: George Allen & Uniwin, 1942.

sábado, 24 de março de 2012

Destrua-me e te devoro!

Bem o disse Saramago: estamos cegos. Usamos perversamente a Razão pois humilhamos a vida. Perdemos o respeito a nós mesmos, pois que perdemos o respeito devido a nossos semelhantes.
A cegueira de que se trata é a cegueira da razão que, mesmo desperta - diferentemente do que pensava Goya - engendrou monstros, raquíticos de fome, obesos de soberba. Fechamos os olhos da piedade, diria o pae de santo Jubiabá. Somos pétreas sombras de algo sem nome. É preciso, no entanto, nomear. Escritos ou não, devemos buscar Todos os Nomes, vivos e mortos.
É preciso viver, despertar do sono mitológico que faz com que nossa vida pareça real. Tudo é faz-de-conta. E deve sê-lo. Daí nossa obrigação em, se pudermos ver, olharmos e podendo olhar, repararmos. E reparar em seu duplo sentido: o reparo visual, do detalhe, das tantas dimensões espaciais possíveis; e a reparação dos atos que cabem a nós.
É preciso viver aquele caráter destrutivo que vê caminhos em toda parte e que de duradouro só a enxerga a própria duração; que tem a consciência do homem histórico, "cujo sentimento básico é uma desconfiança insuperável na marcha das coisas e a disposição com que, a todo momento, toma conhecimento de que tudo pode andar mal. Por isso [...] é a confiança em pessoa".
É preciso destruir a falsa amoralidade, ela mesma uma correção. Destruir as imagens que lhe servem de justificação: o Justo, a Liberdade, o Amor. Destrua-se a falsa descrença na consciência, sempre uma sombra na boca dos bons moços. É preciso destruir, jovens, destruir. Destruir-se.
O desafio não é falar, ter razão, convencer. Convencer é improdutivo.
O desafio é aquele que, no fundo, busca o verdadeiro destruidor, é escrever a mais simples das histórias: a de uma pessoa que vai à procura de outra.
Grandes pessoas pensaram e falaram, agiram, não para quem as quisesse ler ou escutar, mas para quem tinha a coragem de fazê-lo. Foram destruidores rodeados de pessoas, testemunhas de sua eficácia.
Destruamo-nos!
Isso me foi dito. Atreve-te a destruir. Destrua-se para criar a ti mesmo. E faça-o na busca à única coisa que há na vida - além da morte, que estaremos sempre longe de compreender - que é a outra pessoa. Logo ali.  Depois me fale de sua moral amoral. Encoraja-te a ler-me, a ouvir-me, a destruir-me contigo, hypocrite lecteur, mon semblabe, mon frère!


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Qual a importância de um estado?

A moda nao é um fenômeno passageiro. O que é passageiro é simplesmente seu objeto. Assim sendo, a moda também se expressa no campo do pensamento. Existem autores da moda. Atualmente, parte desta moda gira em torno da aura mística de Walter Benjamin, aquele trágico crítico assimilado que tantos insistem em transformar em rabino. Walter Benjamin, assim como seu amigo e companheiro Gershom Scholem, jamais foram sionistas. Benjamin recusou-se a partir para Jerusalém e Scholem, emérito professor da Universidade Hebraica, nunca defendeu o sionismo, se recusando mesmo a aceitar o hebraico como língua oficial de um possível Estado judeu, pois o hebraico, para ele, é uma língua consagrada, sacra.
É de se pensar o motivo das recusas. Benjamin viveu sob um regime político no qual o Estado deve ser apreendido como um conceito que viu, nesta época, a identificação entre conhecimento e verdade. Sob o regime totalitário, o Estado pode, pela primeira vez, realizar-se como ideal. 
Pois o conhecimento, nos diz Benjamin, se relaciona ao conceito, mas a verdade está contida na palavra. Pela primeira vez, o Estado descolou-se do plano conceitual, para realizar-se como pura palavra, nome puro que encerrava as possibilidades últimas de sua própria composição. Por isso tantos vêem Benjamin como um místico, um rabino e, graças ao seu 'caráter destrutivo', um anarquista. Benjamin nao foi, em realidade, nenhum destes, mas isto nao vem ao caso. O que importa aqui, é que foi por essa identificação entre palavra e conceito, verdade e conhecimento, que Benjamin enxergou o sem-número de atrocidades advindas da concepção compartilhada por direita e esquerda. O Estado sob o qual vivia, era um Estado na acepção total da palavra. Encerrada em si mesma, à palavra nada escapa, ao nome - pois palavra e nome sao um e o mesmo - tudo é hermético. Esse é o risco político da luta que se trava contra a autoridade e o poder, recair numa linguagem que reproduz, pela verdade contida no nome, a lógica de uma dominação intrínseca.
O Estado que causou a morte de Benjamin, que causou o extermínio de pessoas aos milhares - independentemente do por que, mortes humanas nao se resumem à contabilidade ou à justificativa; os mortos nao se levantarão para falar - foi o Estado que herdamos. A própria realização da identidade entre conceito e nome poderia ter sido o suficiente para que abolíssemos, de forma radical, a nomenclatura daquilo que confundimos com pátria, nação, ou lar. Mas a verdade foi bem diferente. Exatamente por essa capacidade totalizante e totalitária do Estado, percebemos a total dependência que possuímos sob esta mesma forma de organização sócio-política. O Estado se tornou necessário, e se a figura lógica seria a de um mal necessário, vivemos bem o contrário e pensamos que é um bem necessário. Bem nao somente no sentido do Bom, mas no sentido do bem que se detém, do bem material. Nosso bem material é de tutela do Estado, e na caótica organização à qual nossos bens sao submetidos pela administração estadual, podemos lavar as mâos da responsabilidade do desenrolar histórico. Tudo se torna forca do acaso. O Estado se tornou uma grande poltrona reclinável para a sociedade. De início, pode ser incômoda, as costas se cansam do ângulo reto que acaba por nos paralisar, mas com a pressão certa, posta no lugar correto, ela nos abraça e nós podemos dormir tranquilos.
Ora, nao existe Estado que preconize o bem-estar. O Estado, seja ele qual for, é e só pode ser compreendido em nossos dias, como o requisito formal a uma política que atua na lógica da oficina mecânica: partes sobressalente sao remendadas e trocadas para servirem a outro propósito. Se nada mais pode ser aproveitado, elas sao descartadas imediatamente.
A lógica de um Estado, seja ele qual for, será sempre a da reprodução daquilo que Benjamin pode perceber com perspicácia: a lógico intrínseca de uma dominação que começa pela linguagem, pelo nome. Por isso Benjamin virou seus olhos à história. Pois era essa mesma história, sob a sombra do historicismo e da necessidade de se descobrir a lógica do desenvolvimento histórico fato por fato, 'tal qual aconteceu', que legitimou a dominação da qual o Estado moderno se serviu.
A história racional, pretensamente neutra ou secular, mitologizou-se. A historia do homem tornou-se a rua de mao única para uma teleologia prescrita nas religiões institucionalizadas: na chegada do Messias pela porta estreita, na segunda vinda do Cristo, ou na conversão do mundo aos ensinamentos do único Profeta de Deus, nas regras e nas proibições, no tabu e no jejum.
Foi essa mesma superação do mito pela religião que serviu ao Estado, pautado pelo Capitalismo, para que este se tornasse ele mesmo um religião.  O Estado, pelo Capitalismo - nao há Estado sem Capitalismo - sacralizou-se, tornou-se uma certeza tao clara quanto a existência de Deus ou a vida após a morte, isto é, certeza nenhuma, senão dogma.
Sob essa sacralizacao, a história transforma-se, assim como a religião, em tabu, ou seja, em mito. Religião e História caem para o domínio da natureza sob a qual nao há escapatória. É esse mesmo problema que o Oriente Médio, em nossos dias enfrenta. A promessa de um Estado prometido por Deus é a confirmação do estatuto mitológico falseado de uma realidade social que, dada pelo Capitalismo, é de foro econômico e consequentemente, dominador.
Nao há Estado que sirva ao povo. Um Estado serve ao povo na medida de seu próprio interesse, na garantia de sua reprodutibilidade. A ideia de uma Terra Prometida nao tem relação alguma com a necessidade de uma território nacional. Essa era a questão que dizia respeito a Benjamin e Scholem no tocante à Palestina. A ideia de um Estado Judeu é inconsequente e autoritária porque se impõe pela nomeação de um Justo eleito. É tao absurda quanto nos pautarmos pela brincadeira de que 'Deus é Brasileiro'. Porque o Estado é em si mesmo um desrespeito à religião enquanto organização de uma doutrina histórica de crenca. Porque o estado vem para tomar o lugar da religião, para tornar-se, ele mesmo a religião vigente. O falseamento entretanto, recorre no fato de que, por trás de sua pretensão totalizadora, o Estado mascara-se pelo sistema linguístico-cultural daqueles que o cultuam. O estado vive da fagocitose, vive de devorar o Estado mais fraco, sorvendo-se de sua energia econômica para fortalecer-se.
Por isso, para a Sociedade Ocidental, o Estado Laico foi uma conquista, ainda que nao sem problemas, para o pensamento e as formas de vida. Ele garante a situação necessária para a superação da problemática cultural. Nao só, um Estado verdadeiramente laico, suprime o apelo à religiosidade como fonte de Justiça e justificativa política. Por isso o Reino Unido foi, perspicazmente, contra a formação de Israel. 
Sem colocar a necessidade de um território nacional em questão, porque esse me parece um apelo justo, a justificativa de Israel se dá sob a ótica daquela que os países Ocidentais põem e questão desde o fim da Segunda Guerra. A necessidade de um território nao por questões de organização sócio-cultural e mesmo econômica, mas por questões de destino manifesto. nesta esteira, incorrem hipocritamente no mesmo discurso de que acusa seus vizinhos inimigos: domínio regional. É absurdo que o Islam se exija um mundo sem fronteiras territoriais, mas nao é absurdo que se organize um país porque lhe foi prometido por Deus. Nao só um país, na verdade, mas um Estado, um Estado real, forte, mitológico, porque na acepção de um Estado judeu para o Povo Eleito, confunde-se - talvez o propósito seja misturar propositadamente - o caráter falseador do Estado moderno, posto em questão desde o fim da Guerra.
Neste movimento, uma jornalista ou coisa qualquer é capaz de utilizar este mesmo argumento como desculpa para criticar, com uma ironia deselegante que lhe deve ser bem característica, da 'Utopia' palestina de um território árabe. Mas até onde se pode pensar, a ideia do território judeu unificado foi durante muito tempo uma utopia.
Claramente, a pseudo-qualquer coisa desconhece a diferenciação entre utopia e utopia concreta, esta última pensada, inclusive, por outro intelectual judeu alemão - porque é importante dizermos que esses intelectuais da Escola de Frankfurt por exemplo, eram judeus, mas também alemães. Ironiza, também o domínio palestino do marketing, que os levou inteligentemente a banir aos poucos a sigla OLP. Como eu disse, os dois povos sao face da mesma moeda. O argumento desta - como chamá-la? nao consigo classificá-la como jornalista, analista política e muito menos como pensadora -  pautam-se por essa desculpa mitológica da terra prometida, da promessa de Deus, quando a questão real envolve o interesse que é próprio ao Estado, nao só o Estado Israelense, mas qualquer Estado. Esta mulher se serve, se apropria dos termos clichês de quem ainda nao conseguiu se desligar das aulas de História do colégio, de chavões como 'eternos inimigos de Israel' e de uma aparente conspiração mundial contra seu povo. 
Os judeus nao deveriam precisar - e eu creio que uma elite intelectual de fato nao precise - deste repertório exaustivo de um Holocausto sem fim no qual ninguém, no mundo, foi inocente a nao ser os judeus. 
Trocando em miúdos, quando o mundo contemporâneo revê a problemática intrínseca do Estado nacional e do Capitalismo, porque esse pendor tao grande cada vez mais forte de Israel à detenção de um Estado? Porque o argumento é o mesmo do Islamismo: o direito divino, a mitologia do destino que concretizará, sem escapatória, a sacralizacao de todo um povo frente a outros.
Nao contente com isso, a mesma redatora contra-argumenta o pedido da Autoridade Palestina ao reconhecimento do Estado Palestino na ONU. Ora, torna-se tao errado agir conforme as regras de um jogo mais ou menos civilizado, quanto lutar fisicamente, por meio da resistência, contra aqueles que se consideram inimigos reciprocamente.
No fim, isso tudo parece ser consequência, pelos dois lado, da História transformada num grande Tabu, na mitologizacao e inescapabilidade da teleologia imposta por esse grande Mito nos quais se tornaram as religiões.
Nomes nao sao necessários. Mas a quem interesse, o artigo da mulher citada acima, encontra-se na Revista Shalom do dia 19 deste mês. Na mesma revista relata-se um artigo sobre o pendor anti-semita de 20% da população alemã, fator que se repete com outras cifras pela Europa graças às origens históricas da Inquisicao.
Seriam inúmeros os argumentos possíveis para combater esses tipos de juízos históricos de valor, mas sao exatamente estes juízos que reproduzem uma linguagem burra que nao resolve problema algum. A trajetória da justificativa histórica no que diz respeito a Israel está intimamente ligada a uma resposta autoritária porque se amarrou intimamente ao problema mitológico da Schulde.