quarta-feira, 30 de março de 2011

Sobre a Amizade

Amizade, dizia Montaigne, não se explica. A Amizade é o reconhecimento das almas, uma frente à outra. É o reconhecimento de almas como gêmeas. Por isso amigos, reais, se amam, e não temem dizê-lo. A amizade talvez seja a única jóia da vida que nos permita contar o tempo não de maneira retrógrada, tal qual o pensamento de Bergson. É por isso que, quando encontramos verdadeiros amigos, mesmo depois de muito tempo, sentimos como se o houvessemos visto há um dia apenas.
O homem, não há dúvida, é um ser para a morte. Por isso devemos querer viver. Se há algum modo de transformarmos nossa existência, direcionando-a pela pulsão de vida, a amizade é sem dúvida um ponto decisivo. Isso talvez pelo fato de ser a Amizade, conforme Aristóteles, um fenômeno que "assinala o mais alto ponto de perfeição na sociedade". A verdadeira amizade implica uma série de consequências ético-estéticas, pelo fato de, por exemplo, uma amizade ser uma grande legisladora, posto que amizades exigem justiça. Isso não significa  imposição de leis e obrigações naturais, como o dever familiar. As Amizades se exercem livremente. Por isso mesmo requerem justiça.
A amizade talvez seja mesmo algo cujo interesse não é direcionado ao amor, ao dever, à obrigação ou ao prazer, mas pura e simplesmente, à própria amizade. É difícil encontrar alguém que tenha definido melhor a Amizade do que Montaigne, em seus Essais, grande obra de Experiência. Sua amizade - e ele com certeza discorria sobre sua relação com La Boétie - é uma em que "as almas entrosam-se e se confundem em uma única alma [...], não se distinguem, não se lhes percebedo sequer a linha de demarcação". Esta filia nunca se esgota e atigne um grau de perfeição. Tal Amizade, que nos parece inexplicável - e de fato, talvez seja - só pode atingir um nível de compreensão se a tivermos como uma identificação de caráter.

quarta-feira, 16 de março de 2011

O Fantasma da Multidão


Scracth board de Lucas Armendani
Naquela época, quando os miasmas dominavam as cidades, as epidemias se instauravam rapidamente. Os sintomas eram: diarréia, desidratação, febre, falta de apetite e manchas escuras pelo corpo.
Costumava-se marcar com giz as portas das casas contaminadas, para que se soubesse em que parte das pequenas metrópoles se podia caminhar, ou para saber que trajeto fazer na volta à casa.

Quando Jean-Jacques Fournier, entretanto, no começo de 1848, perdeu os irmãos e a mulher, ele começou não só a produzir bombas em casa, como a marcar a giz, ironicamente, a casa dos burgueses que explodiriam. Com aquela cruz, eles voltariam à paz divina para a qual enviavam o sem número de proletários que adoeciam após horas de trabalhos mecânicos nas fábricas.

No fundo, Fournier era só mais um homem na multidão. Por isso podia caminhar como mais um na cidade que, para ele, não era mais do que uma fantasmagoria. Há muito tempo ele colecionava a fisionomia da cidade em que morava  e em pouco tempo, suas bombas começaram a ser lançadas.

Cada bomba, cada punhalada, vinha acompanhada pela marca da cruz na porta dos mortos.

Isto se conta na minha família. E diz-se que é história real.

A cidade era Paris.

O ano era 1848.

segunda-feira, 14 de março de 2011

O amor nos tempos do Cólera

O Amor, nos tempos atuais, pode ter um caráter revolucionário: suspende o tempo e liberta da coisificação.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Os fados do Arlequim.


Agora que começava o carnaval, eu havia me esquecido das dores. E a infecção, que havia começado pelo baço, parecia nem existir. Carnaval não é tempo de tristeza; pelo menos, é um tempo em que fingimos não estarmos tristes. A única coisa que eu queria era pular e brincar o carnaval, como quase todos os anos eu havia feito durante minha vida. Primeiro com a família, fantasiado de pirata, palhaço, astronauta, super-herói, jogador de futebol, desenho animado - pelo menos dos 4 aos 10 anos, quando começa minha memória e até quando deixei de me fantasiar - e depois com os amigos, nas noites que terminavam com todos os amigos separados, cada um com uma, aí já nos fantasiávamos de mulher e bebê, como os antigos foliões de rua.

E assim seria. Eu brincaria, pularia, cantaria, dançaria. Voltaria para casa com o sol a nascer. Isso se voltasse.

O engraçado é que, no fundo, eu sempre tive uma certa aversão por carnavais, ainda que me sentisse insuportavelmente atraído. Esse momento em que, para mim, fingíamos não sermos tristes me parecia um pouco falso, um pouco desonesto. Eram três dias para sorrir e o resto da vida para chorar, como dizia a música. E isso me parecia errado. Essa festa da qual tantos antropólogos falaram. Para alguns era um momento de igualdade social total no qual os chefes e os empregados farreavam juntos. Momento sem mando ou obediência, o que para alguns só servia para reproduzir o status quo, sendo um momento catártico de que a sociedade dependia para que se reproduzisse. Eu acreditava nisso. Mas acreditava também em outra coisa, da qual ciência nenhuma podia explicar. Algo que só podia ser compreendido na arte da festa, no encontro dos corpos, na profanação da ordem.


Ilustração de Lucas Armendani

A rua começava a encher. Os foliões chegavam, alguns já bêbados e estrábicos. Muitos abraçados num torvelinho de cores e roupas - ou falta de roupas - que deixavam o clima mais pesado. Minha saída era, com certeza, me entregar aos deleites do álcool, algo que sempre fiz com pouca dificuldade. Centenas de olhos entrecruzavam-se. Uns com malícia, outros com desdém ou indiferença. Os meus guiavam-se perdidamente na tentativa de arrebatar-me com olhos novos. Doces olhos femininos, partes, de preferência, de um corpo jovem e curvo, suado, quente. No meio da multidão, que começava a cantar as marchinhas tão queridas cujas orignes já a maioria esquecera, para minha surpresa eu fui encontrado por um par de olhos amendoados, verdes, com longos cilhos postiços de colombina. Olhos proporcionais ao rosto fino com uma boca carnuda e vastos cabelos cacheados a cobrir as orelhas.O corpo esbelto de bailarina, metido num maiô de zebra fugia-me da visão de forma estranha, porque os olhos estavam ali sempre ao meu alcance. Agora que a multidão saía em procissão - isso, carnaval é isso mesmo, uma procissão, uma grande marcha por redenção - tornava-se mais difícil ainda encontrá-la e minha vontade de seguí-la perdeu-se na turba desenfreada.

O que é o carnaval? pensei. Por que? Por que essa sede de viver até a morte? Por que desta vontade de nos acabarmos na festa? Esse desejo pulsional de não precisarmos acordar no dia seguinte? E por que eu, logo eu,consigo sentir-me morrer nos olhos de alguém que já se foi? Como pode homem criar algo tão belo daquilo que parece ser, para mim, a maior das tristezas? Mas, bem, de tristezas belas talvez eu entenda. Eu! Eu só não, todo o mundo. A história do mundo foi feita de belas tristezas. Talvez os momentos de felicidade sejam mesmo páginas em branco na história. Hoje, no entanto, não me importa. É carnaval. O poeta sou eu!

quinta-feira, 3 de março de 2011

O Espaço da Antropologia no Pensamento: Lévi-Strauss por Merleau-Ponty

Em seu texto em homenagem a Claude Lévi-Strauss, Maurice Merleau-Ponty esboça uma rápida análise da Antropologia. Segundo o filósofo, a Antropologia, em seu início, havia pretendido tratar os fatos sociais como coisas, segundo bem conhecidas palavras de Durkheim e não como um sistema de idéias objetivadas. “Mas, tão logo tentava precisar o social, só conseguia defini-lo como ‘psíquico’. Tratava-se, dizia-se, de ‘representações’ que simplesmente eram ‘coletivas’ em vez de serem individuais” (MERLEAU-PONTY; 1980a: 193). Faltaria então uma penetração paciente no objeto bem como uma comunicação com este objeto. Uma reviravolta que começaria a dar conta desta problemática se inicia com Marcel Mauss - sobrinho e companheiro de pesquisas de Durkheim – que, ao conceber o social como simbolismo, explorando totalidades ou conjuntos articulados, pôde respeitar as realidades individuais e sociais sem torná-las impermeáveis umas às outras. Para que entendamos isto, basta que nos lembremos do pequeno ensaio sobre as práticas corporais, no qual ele mostra rapidamente de que modo a compreensão do corpo e de como lidar com o corpo são questões culturais: o nado, a marcha, a posição da mulher no parto.

Em Mauss, segundo Merleau-Ponty, já estaria contida a idéia de estrutura que será desenvolvida por Claude Lévi-Strauss. Idéia esta das mais complexas ainda que necessária à compreensão e ao estudo do método estruturalista, principalmente Levi-straussiano. Para Merleau-Ponty, o desenvolvimento das pesquisas estruturalistas teria causado uma inovação no campo das ciências humanas e da filosofia, a partir do momento que possibilitaria tanto às ciência quanto à filosofia, uma nova perspectiva para a resolução de problemas relativos ao comportamento humano, às organizações sociais e à própria compreensão da humanidade. Este texto tem como objetivo uma análise sobre a função e o objeto da Antropologia aliando-se o pensamento de Lévi-Strauss ao de Merleau-Ponty.

Alfred Kroeber, que Lévi-Strauss cita textualmente, dizia que qualquer coisa que não fosse completamente amorfa teria estrutura. Mas a noção de estrutura não dependeria de uma definição indutiva, fundada na comparação e na abstração de elementos comuns. O que se deve buscar na idéia de estrutura é a estrutura do sentido que esta própria idéia possui. “O princípio fundamental é que a noção de estrutura social não se refere à realidade empírica, mas aos modelos construídos em conformidade com esta” (LÉVI-STRAUSS; 1967: 317). As bases para a construção destes modelos não são nada mais do que as relações sociais. Elas que tornam, a partir dos modelos construídos, as estruturas manifestas e por se deter na complexidade e multiplicidade das relações sociais, a pesquisa estrutural não reivindicam um domínio próprio. Os fatos sociais deixam de ser coisas, como para Durkheim, e passam a ser estruturas: sistemas de parentesco, filiação, sistema de troca lingüística, de troca econômica, de arte. É a interação destes sistemas que compõem a sociedade e ao serem considerados como estruturas, distinguem-se das idéias cristalizadas, das mônadas das filosofias sociais.

Logo, é óbvio que a questão da definição da estrutura é um problema epistemológico, pois é ela mesma, um estatuto para o conhecimento. É preciso saber de que forma se operacionaliza o conhecimento, para que se saiba o que se conhece. Segundo Lévi-Strauss, a estrutura só pode ser observada a partir de modelos que supram quatro condições:

a) deve possuir um caráter de sistema. A modificação de um de seus elementos envolve a modificação do todo;

b) deve pertencer a um grupo de transformações cada qual correspondendo a um modelo da mesma família, constituindo um grupo de modelos;

c) deve ser passível de previsão da reação em caso de modificação;

d) deve ser construído de modo que seu funcionamento explique os fatos observados.

Para tornar esta idéia mais compreensível, tomemos o exemplo dado por Merleau-Ponty. Os sujeitos que vivem numa sociedade não tem necessariamente o conhecimento dos princípios que os governam. No que diz respeito às trocas lingüísticas, por exemplo, um sujeito falante não precisa, para falar, passar pela análise lingüística de sua própria língua. A estrutura desta língua é, antes, praticada por nós como óbvia. Não obstante, o modelo construído sobre a língua, a língua mesma, formal, é um sistema passível de transformações cujo modo de funcionamento explica a forma como se manifesta. Os modelos podem ser então, conscientes ou inconscientes, como no caso da língua, dependendo do nível em que funcionam. Um grupo de fenômenos se presta muito mais à análise estrutural quanto menos disponha de um modelo consciente para justificá-lo. Podem também os modelos serem mecânicos, como nas leis de casamento das sociedades primitivas nas quais os indivíduos são divididos em classes de parentesco ou clãs; ou estatísticos, como nas leis de casamento de nossa sociedade, que dependem de leis muito gerais.

Ainda que não possamos insistir na questão metodológica correndo o risco de nos afastarmos de nosso objetivo, a idéia relativa aos modelos é necessária para que se entenda o objeto de nossa análise: a idéia de estrutura. Quando se diz que a pesquisa estrutural tem por objetivo o estudo das relações sociais com a ajuda de modelos, e supõe-se que um modelo bem construído deva ser parte de um grupo de modelos, substituem-se as antinomias por relações de complementaridade. O grande problema que envolve a pesquisa antropológica é um problema inerente ao próprio objeto da Antropologia: a experiência antropológica é a de nossa inserção como sujeitos sociais num todo cuja síntese já está feita. Por outro lado, aí reside a tarefa mais específica da antropologia: o emparelhamento da análise objetiva com o vivido, o que faz com que a Antropologia viva as próprias convicções, a prova incessante de si pelo outro. A antropologia, principalmente pela análise estrutural, deixa de ser uma especialidade e se torna uma maneira de pensar. Para Merleau-Ponty, ao por em questão a alteridade, a antropologia traz à tona a discussão metafísica e fornece à filosofia um instrumento para o alargamento da razão, pois tem em vista um universal constituído por relações de complementaridade, desembocando, então, numa ontologia.

Além de Kroeber, citado anteriormente, Radcliffe-Brown também pensou a idéia de estrutura. Não só, o próprio termo “estrutura social” evoca diretamente seu nome. Mas em sua teoria, a estrutura aparece como um conceito intermediário entre os da antropologia social e da biologia. Radcliffe-Brown reduz os estudos de parentesco ao nível da morfologia e da fisiologia descritivas, não distinguindo claramente estrutura social e relações sociais. O empirismo de Radcliffe-Brown o fazia crer que a estrutura pudesse ser diretamente apreendida na realidade concreta, o que causou a crítica de Fortes, sustentada por Lévi-Strauss de que quando se busca a definição de uma estrutura, situa-se no nível da gramática e da sintaxe e não no da língua falada. Essa conexão com a lingüística não é à toa. O que Lévi-Strauss faz é aliar o método investigativo da lingüística ao da etnologia. O que Saussure havia feito com a lingüística será feito por Lévi-Strauss na Antropologia: trazer à tona estruturas inconscientes das relações sociais. Trabalhar no nível do significante, a partir do significado, trazendo, por exemplo, os estudos de parentesco para o plano comunicativo, pois, como herdeiro de Boas, Lévi-Strauss assume a idéia de que a natureza dos fenômenos sociais é inconsciente e assume, frente à lingüística, uma homologia de método e uma heteronomia de objeto.

Da mesma forma que a estrutura da linguagem é inconsciente, no fundo dos sistemas sociais aparece uma infra-estrutura formal inconsciente, como se a ordem da cultura humana fosse uma ordem natural. A noção de estrutura aparece assim como não sendo empírica, pois o que se observa empiricamente é a fenômeno manifesto inconscientemente: língua, sistemas de parentesco, crenças. O que se faz é, a partir dos fenômenos, criar modelos que nos permitam chegar às estruturas. Durkheim, por exemplo, tratou o social como uma realidade exterior ao indivíduo, como se o social fosse a base de explicação de qualquer fato.

“Mas o social só pode prestar esse serviço se não for uma coisa, se investir no indivíduo solicitá-lo e ameaçá-lo ao mesmo tempo, se cada consciência, ao mesmo tempo, se perder e se reencontrar na relação com as outras consciências, enfim, se o social não for ‘consciência coletiva’, mas intersubjetividade, relação viva e tensão entre os indivíduos” (MERLEAU-PONTY; 1980b: 184)

Deve-se, portanto, considerar os fatos como aspectos dos vínculos humanos, real e fantástico, tal qual elaborado pela civilização considerada. O que o estruturalismo é capaz de fazer, na medida em que identifica as bases inconscientes do mundo simbólico da cultura, é atingir a atitude humana que constitui o espírito de uma sociedade. Se seguirmos a idéia de Merleau-Ponty, a antropologia estruturalista retomaria a metafísica, pois esta existe onde quer que, cessando a vivência na evidência do objeto, apercebe-se a subjetividade radical de toda experiência. A acusação de anti-subjetivismo direcionada ao estruturalismo se torna, de fato, superação e mudança de foco na querela sujeito-objeto. Quando se buscam as estruturas relativas ao parentesco, por exemplo, por meio de modelos de casamentos, revela-se a coexistência de todo ser que se possa ter noção.

A metafísica serve de aporte a Merleau-Ponty para que ele pense a necessidade da Antropologia. Segundo ele, a metafísica seria o propósito deliberado de descrever o paradoxo da consciência e da verdade. A partir que do momento em que se reconhece a experiência como única e pessoal, abre-se o questionamento sobre o que não seja próprio, pessoal, isto é, eu. Essa vida individual desperta para o espanto da defrontação com os contrários. Assim compreendida, a metafísica é o contrário do sistema, pois a metafísica tem seu estofo nos objetos da experiência cotidiana e não cria, portanto, um mundo fantástico paralelo ao mundo empírico. Afirma, por outro lado, que o próprio mundo empírico é fantástico, repleto de evidências problemáticas e por isso mesmo, metafísico. A metafísica se torna, para solução destas problemáticas, o reconhecimento e a descrição dos paradoxos da alteridade da identidade fundantes da experiência e do pensamento. A própria vida, portanto.

Peguemos, por exemplo, O Pensamento Selvagem, de Lévi-Strauss. Logo no primeiro capítulo, Lévi-Strauss mostrará que a operacionalidade da razão entre povos de diferentes culturas, ou de diferentes “estágios”, enfim, povos ditos primitivos e povos modernos, se dá da mesma maneira. Por muito tempo acreditou-se que os indígenas só conhecessem da natureza aquilo que lhes era útil, seja para cura ou alimentação. A verdade é contrária a isso: a natureza não é conhecida porque é útil, mas útil por ser já conhecida. Os índios coahuilla, por exemplo, de uma região desértica da Califórnia, onde brancos mal existem, vivem na abundância, conhecem 60 plantas alimentares e 28 outras com propriedades narcóticas, estimulantes ou medicinais. Os exemplos são inúmeros: a língua tewa emprega termos diferentes para cada parte ou quase toda parte do corpo dos pássaros e mamíferos. “É claro que um conhecimento desenvolvido tão sistematicamente não pode ser função apenas de sua utilidade prática” (LÉVI-STRAUSS; 2006: 23).

O mesmo acontece com a magia, principalmente se tomarmos como referência a psicologia e a psicanálise.

Segundo o método da dupla crítica, peculiar à etnologia, trata-se [...] de ver a psicanálise como mito e o psicanalista como feiticeiro ou xamã. Nossas investigações psicossomáticas permitem-nos compreender a cura xamanística, ou, por exemplo, como o xamã auxilia um parto difícil. Mas o xamã também nos permite compreender que a psicanálise é a nossa feitiçaria (MERLEAU-PONTY; 1980a: 202).

A antropologia trata, então, neste contexto, não de dar a razão do primitivo ou mesmo de lhe dar razão contra nós, mas de instalar, uns e outros, num terreno em que sejam inteligíveis. Torna-se então, necessária, pois alarga nossa razão de modo a torná-la capaz de compreender aquilo que, tanto em nós quanto nos outros, precede e excede a própria razão. Merleau-Ponty insere esta ordem humana como advinda da função simbólica. Tempo, história, trabalho como negação da natureza, só podem surgir numa “ordem simbólica”, que se caracteriza com o possível e com o porvir. Aí, a antítese entre natureza e a cultura torna-se menos nítida. Suscita, além disto, o problema da historiografia: é preciso despertar o passado, repô-lo no presente. Problema relativo ao anacronismo, discutido por Lucien Febvre, que mostrou que o problema da descrença no Século XVI, todo o universo mental de Rabelais, não pode ser descrito em nossa linguagem, nem pensado com nossas categorias. Nesta questão, o estruturalismo é capaz de pensar o mundo fora dos acontecimentos situados no tempo datado, se instaurando numa história que sabe o mito e os empreendimentos humanos para além dos acontecimentos parcelados.

Deste modo, para Merleau-Ponty, a Antropologia prestaria um serviço à Filosofia: o de alargar a razão ao desembocar numa ontologia na qual não a velha dicotomia sujeito/objeto, poderia ser superada. Isto não significa, é claro, que a Antropologia tomaria o lugar da Filosofia. A questão, para Merleau-Ponty, é que a Filosofia não pode dispensar as categorias científicas, assim como as ciências não podem dispensar os conceitos filosóficos. De modo geral, a Antropologia seria uma grande recusa e, por isso, traria tantos benefícios tanto à ciência quanto à filosofia; se recusa a aceitar o dado como real. Aí, neste ato aparentemente simples, estaria contida a possibilidade de um verdadeiro progresso no pensamento humano, no momento em que este tomaria como pressuposto a inteligibilidade, a identificação, ou, nas palavras de Merleau-Ponty, a comunicação entre as coisas, que falam conosco. Só precisamos nos concentrar um pouco, que as entenderemos.

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Bibliografia

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

_____________________ O Pensamento Selvagem. Campinas: Editora Papirus; 2007.

MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss a Claude Lévi-Strauss. In. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980a.

______________________ O Metafísico no Homem. In. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980b.

terça-feira, 1 de março de 2011

Sobre o Conceito de História IV

Tese XVI - "O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas no qual o tempo estanca e ficou imóvel (Stillstand). Pois esse conceito define exatamente o presente em que ele escrever história para si mesmo. O Historicismo arma a imagen 'eterne' do passado, o materialista histórico, uma experiência com o passado que se firma aí única. Ele deixa as outros se desgastarem com a prostituta 'era uma vez' no prostíbulo do Historicismo. Ele permanece senhor de suas forças: viril o bastante para fazer explodir o contínuo da história".

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A alegoria da prostituta no prostíbulo do Historicismo. Até hoje a prostituta "era uma vez" recebia os vencedores um após outro, sem escrúpulos para se dar a um e, em seguida, abandoná-lo para receber o próximo. Assim, "era uma vez" Júlio César, "era uma vez" Carlos Magno e etc. O materialista histórico, por outro lado, confia à imagem do passado o papel de uma experiência única percebendo num lampejo, num instante de perigo, a constelação crítica que essa imagem forma entre passado e presente. Para que esta constelação se forma, é preciso que fique imóvel por um momento, suspensa, o que equivale, no nível historiog´rafico, à interrupção causada pela revolução.