quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Saramaguiana-Benjaminiana?

“O catálogo de horrores deste campo de concentração chamado Mundo é inesgotável”  - Cadernos de Lanzarote

Estética saramaguiana

“A arte não avança, move-se”

Matéria, memória, relato - Bergson por um caso específico

A filosofia de Henri Bergson é dificilmente classificável entre as correntes predominantes da filosofia na medida em que prega uma filosofia dualista, na tentativa de superar a divisão entre idealismo e realismo, empírico e a priori. Para ele, o mundo se divide em duas partes desiguais: de um lado a vida e de outro a matéria. O resultado entre o choque constante dessas duas partes é o universo.

Neste jogo de forças o intelecto é, de acordo com Bergson, o infortúnio do homem, pois é uma incapacidade natural para compreendera vida; “a geometria e a lógica, que são seus produtos típicos, são estritamente aplicáveis a corpos sólidos, mas, quanto ao resto, o raciocínio tem de ser refreado pelo senso comum”. Não obstante, matéria e intelecto são constituídos do mesmo estofo, o que significa que não há coisas separadas, mas um fluxo interminável de vir-a-ser. O grande problema a ser resolvido é que o intelecto, que separa as coisas, não é ativo, como a vida, mas puramente contemplativo. O intelecto, assim, relaciona-se com o espaço, tende para a materialidade; a intuição, ao contrário, relaciona-se com o tempo; tempo este que não deve ser entendido matematicamente, mas pelo conceito da durée, que forma o passado e o presente num todo orgânico.

É na memória que a durée se mostra, pois na memória o passado sobrevive no presente. Matéria e memória mostram, assim, a relação entre mente e matéria. Matéria e memória mostram, assim, a relação entre mente e matéria, superando a cisão idealismo/realismo na medida em que afirma ambas como reais na intersecção da mente e da matéria, que é a memória. No extremo oposto, Bergson coloca a percepção pura, que é o grau mais inferior da mente, isto é, mente sem memória, e é constituída pela ação do aparecer; sua totalidade reside em sua atividade. Assim o cérebro se torna importante para a percepção, na medida em que não é um instrumento de ação, sendo que sua função é limitar nossa vida mental ao que é praticamente útil.

Esse é, enfim, o intelecto, aquela faculdade a qual Descartes enfatizou como suprema; faculdade que divide e ordena o mundo em coisas separadas. A intuição, por outro lado, apreende uma multiplicidade de processos que se interpenetram, algo raro ao intelecto. Na medida em que Bergson destaca a ambigüidade entre as duas grandes correntes filosóficas, sua filosofia emerge como essencialmente crítica, esforçando-se para resolver a problemática tempo/espaço, matéria/memória de modo que implica, logicamente, uma releitura das doutrinas realista e idealista.

O realismo fala de coisas, o idealismo de representações. São dois sistemas de notações diferentes. O idealismo deposita toda validade no intelecto. Nele, a modificação cerebral é um efeito da ação dos objetos exteriores. Já o realismo retira destitui toda esta validade e transfere-a para a materialidade. No que diz respeito ao psicofisiologismo, por meio do qual as teorias do conhecimento idealista e realista se dão, só parece ser possível empregar, ao mesmo tempo, os dois sistemas.



O relato de Oliver Sacks que dá nome a seu livro Um Antropólogo em Marte, ajuda-nos a compreender um pouco a relação entre mente e matéria que Bergson procura superar. Este relato conta a história do contato de Sacks com uma pesquisadora estadunidense autista. Sacks a conhece por intermédio de uma médica amiga sua que havia trabalhado com Temple, a cientista autista e passa um fim-de-semana com ela. O mais interessante de seu relato é a descrição de como a vida de Temple é vivida no dia-a-dia.

O que se vê na forma como Temple lida com sua memória, pois a memória tornou-se, ao longo de sua vida, a principal arma contra sua incapacidade de interpretar convenções sociais bem como introjetar estímulos e transformá-lo sem sentimentos. O que se percebe nela é que está recepção de estímulos é feita como recepção daquilo que Bergson chama de dados imediatos, ou seja, como pura qualidade e não como quantidade. Há algo que é puramente característico da natureza humana e que se exprime radicalmente na mente de Temple: a dificuldade de apreender a consciência interna imediata e como pura qualidade mutante. Para isso, é necessária a espacialização do fluxo qualitativo, que é a durée. O intelecto então fragmenta, espacializa a realidade. Em contrapartida, perde-se a natureza do objeto concreto, que só vem pela intuição. A inteligência acaba por permanecer assim, no nível das relações.

Tudo ao que Temple tem acesso são somente relações entre as coisas vividas. Quando Temple vivencia alguma situação em que alguém se sente desconfortável, ela precisa acessar todo um registro de relações similares em sua mente que remontam até o presente para que possa compreender o que se está passando. Ela teve de aprender a intuir, no sentido de apreender a relacionar situações interpenetrantes. Sua mente é a prova de que o trabalho intuitivo descrito por Bergson é estranho ao intelecto. O cérebro de Temple também limita sua vida mental ao que é praticamente útil, mas o que é praticamente útil para ela não se relaciona de forma alguma aos estímulos exteriores que seu cérebro recebe.

O cérebro de Temple, além disso, mostra que não há realidade somente nas representações assim como a realidade não é inerente à matéria que serve para nossas representações. Mas que tanto a matéria quanto a representação dela só fazem sentido juntas. Pois o que seu cérebro faz é exatamente, separá-las e todo esforço de Temple se move no sentido de resignificá-las unindo-as. E ela faz isso com muito sucesso. O que lhe falta, no entanto, é a intuição pura para unir, por meio da durée, toda a série de vivências passadas no presente por meio de suas significações. Não há sentido em suas vivências e é por isso que ela é incapaz de sentir, embora compreenda o que sejam e porque se dêem os sentimentos.

È interessante lembrarmos que durante seu relato Sacks aponta o autismo como uma questão que toca nas mais profundas questões de ontologia, uma vez que envolve um desvio radical no desenvolvimento tanto do cérebro quanto da mente. E isso fica muito claro quando ele fala, por exemplo, da idéia de Asperger, um dos descobridores do autismo, de uma “inteligência autista”. De fato, se lermos atentamente a descrição da mente de Temple, veremos que o intelecto autista – intelecto deve ser entendido segundo Bergson – parece ser uma inteligência radicalmente ordenadora. A mente autista evolui progressivamente em matéria de conteúdo e aritmeticamente em matéria de significado. É quase como se a mente autista fosse idealismo puro embora a capacidade de conscientização das limitações seja imensa, como no caso de Temple.

De maneira peculiar, no entanto, vemos em Temple a complexidade do cérebro humano. Em Temple parece faltar a intuição que une as relações num tempo uno interpenetrável. Essa intuição, no entanto aparece presente em Temple em dois momentos: o primeiro quando vemos suas relações com os animais, nas quais ela mesma diz realmente sentir e compreender os sentimentos animais, como algo natural; e a segunda, quando Temple mostra a Sacks sua “máquina de espremer”. Essa máquina, desenvolvida por ela mesma atua por um mecanismo de cilindros que distribuem sobre o corpo de Temple uma certa pressão que a faz recordar dos abraços de uma tia gorda que a visitava quando ela era criança. Quando Temple sente toda a pressão em volta de seu corpo, ela é capaz de alcançar um sentimento pelos outros. Temple parece assumir um recurso trabalhado por Bergson na idéia da durée, mas cujo conceito foi mais largamente desenvolvido por Walter Benjamin: o da mémoire involontaire. No momento em que é “espremida”, toda uma séria de relações se interpenetram desde a juventude até sua vida presente e Temple é enfim, capaz de significar sua vivência.



De qualquer modo, a filosofia de Bergson é muito complicada. Não há como fazer aqui, um tratado sobre as relações entre sua filosofia e as síndromes mentais. No entanto, esperamos ter sido possível uma leitura em que o tema tratado por Bergson na bibliografia utilizada no curso e um dos relatos de Oliver Sacks, também utilizado no curso, se cruzem a partir do momento em que Bergson trata, por exemplo, da relação entre mente e cérebro e Sacks trata da forma como corpo e mente se separam efetivamente, dia-a-dia em pessoas com síndromes psíquicas. Deste modo, esperamos poder ter debatido um pouco as questões que permeiam a filosofia de Bergson para mostrarmos como a filosofia pode ser aplicada e entendida na vida prática e também, esperamos ter debatido um pouco, a partir das experiências relatadas por Sacks, a forma como as questões da ciência estão presentes em nosso dia-a-dia.

Quinquilharias

Há algo misterioso nas fotos antigas, nos cheiros de nossas roupas de bebês guardadas no fundo de algum armário, nos brinquedos que recusamos a doar. Pois todas essas coisas nos remetem a outros tempo: as primeiras a momentos em que quase sempre sorrimos eternamente; as segundas a um tempo que não podemos lembrar; e as terceiras a momentos em que, brincando, resumiamos a cultura e invertiamos a ordem do mundo. Fazíamos dos bonecos o objeto e o meio de nossa dominação; e dominávamos para o deleite, não para o poder.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O colono penal

No sonho, à la Fanz Biberkopf eu havia sido jogado de um carro - se pelos mesmos motivos, não sei dizer - mas ao invés de perder um braço, perdera os movimentos das pernas, tornara-me paraplégico. Além disso, fui condenado a cumprir pena em alguma prisão, cujo pátio era projetado como os pátios escolares do ensno primário; acredito realmente que fosse o pátio do próprio colégio onde eu havia feito o ensino primário.
No canto esquerdo do pátio, uma engrenagem grande, muito larga e comprida, de cerca de 15 metros por 15 metros, como uma quadra de basquete quadrada. Mas ao invés de piso de madeira, lâminas e roscas que iam e vinham. Parece que eram a parte externa superior de uma máquina cuja finalidade e mesmo a aparência todos desconheciam. Mas, por causa da cadeira de rodas, eu era o único que podia me instalar na máquina, o único que podiapassar por cima dela sem se machucar. Eu era o estado de exceção do mecanismo carniceiro que havia matado tantos - seja por descuido seja como consequência de brigas dos detentos. E tanto era que eu passei a usar a máquina para me exercitar, treinar os braços e os reflexos, desviando das lâminas que subiam, mesmo sabendo que não me acertariam, e apostando corrida com aquelas que corriam de um canto a outro do complexo maquinário.
Os poucos conhecidos que fizera, uma mulher quase idosa, uma adolescente - cujos rostos me fogem da memória - e dois homens cujos rostos nunca cheguei a ver, me observavam queando eu me exercitava e me lembro que ríamos prazerosamente quando eu encerrava minahs sessões. Estranhamente, eu pensava só havermos nós presos ali.
No fim do dia, um rabino tentava me doutrinar, falando dos mistérios de Deus e da necessidade de aceitação do que Ele nos reservava. No começo, o rabino possuía fartas barba e cabeleira ruivas, que acabaram dando lugar à calvície, que fez surgirem rugas profundas que quase escondiam seus olhos.
No fim do sonho, enquanto o rabino gritava, a única coisa que eu me lembro era de olhar para uma moça morena sentada ao meu lado, assustada e eu também, assustado, pois ela trazia flores no cabelo, um vestido rendado e eu soube que a máquina a devoraria...

sábado, 13 de novembro de 2010

História material

Assim como as parisienses, para divulgarem mais facilmente sua mda, lançavam mão de um reprodução atraente de suas novas crianções pelas bonecas manequins, que, após terem cumprido sua função de figurinos de moda, eram presenteadas às meninas como brinquedos, hoje também os meninos recebem em cd's e dvd's ou chips de videogames portáteis, as armas de última tecnologia e o sonho de armas futuras.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O suspiro

O que tem cansado é a glamourização da vida, é o retorno daquele caráter afirmativo da nossa cultura, é a transformação da política em estética, em espetáculo, sob a sombra do desenvolvimento, quando a visão diária que se tem é a de um mundareu de gentes cabisbaixas...