quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Contra

É impressão minha ou o que as pessoas não entedem, de fato, em Nietzsche, é que a transmutação dos valores (e vale dizer que todo nietzschiano quer mudar os valores dos outros e não os deles mesmos), é somente um resgate daquilo que há num cristianismo primitvo que nós esquecemos?
Mas sua ética, luterana, impositiva, levou ao que levou. A vontade de potência, às vezes traduzida como vontade de poder, impera como um todo-poderoso numa vida que é, e só pode ser, incerta. A aparente segurança na vontade de algo maior só pode dar certo quando há dúvida. Pois o que é do amor e da fé, e da própria vida, algo senão do que a dúvida de si mesmo, o que leva a um movimento de constante superação e mutação na busca não de uma certeza, nem de uma segurança, mas de uma facticidade?
Nietzsche, no seu imperativo de pseudo profeta, pregou uma crença como qualquer outra e foi dinamite porque previu a própria inacessibilidade de sua filosofia, destruindo-se a si mesmo (a dinamite não destroi nada se não destruir a si mesma). Mas deixou a maganimidade que são as considerações intempestivas, ou extemporâneas. Principalmente no que diz respeito à história, está ali presente a observação pontual de que é preciso esquecer a própria história para se lembrar da derrota.
Por isso os verdadeiros nietzschianos são os mais difíceis de se encontrar. São pessoas muito semelhantes àquelas que estudaram a história das religiões com afinco. Se por um lado a humildade é, por vezes (de acordo com seu próprio mentor), má conselheira, nunca se esquecem de que ela está em jogo. Exatamente porque seu valor, assim como todos os outros, são mutáveis. Nietzsche, dizem seus biógrafos, foi uma pessoa extremamente agradável que chegava a mentir (humildemente), para não desagradar os outros. "Que bem faria eu, em dizer a verdade a certa pessoa, destruindo uma atitude que mal algum causaria a outros?", chegou ele a dizer em certa situação.
Bom exemplo dos maus-nietzschianos (mesmo que não declarados), se vê nos ateus, agnósticos e neo-pagãos, que atualizam (crêem eles), as críticas primitivas às religiões dominantes. Ou tudo é explicado pelo homem, dizem uns, ou tudo é explicado pela natureza, dizem outros. Afinal, Deus está morto. A risível crítica que se apresenta não passa, entretanto, da má resolução com o superego paterno. Algo que Freud, como bom nietzschiano, englobou em sua teoria geral, tão falível quanto qualquer outra. A crítica à humanidade e a resolução dos problemas à vontade, senso comum entre os jovens burgueses que criticam as responsabilidades que eles não entendem e acusam de sujeições, é não só datada quanto em seu próprio momento histórico, burra. É apenas mais uma parte do processo discursivo que engloba certas pessoas numa dinâmica que lhes diz que são capazes de tudo, inclusive de sua própria libertação, simplesmente se quiserem.
"Cai-se prontamente em estado de êxtase diante do belíssimo som convenientemente anunciado pela propaganda". Isso, que ocorre com a música ligeira, segundo Adorno, acontece com a imagem que vendem de nós mesmos. O fetichismo do eu, presente naqueles que não cederam à depressividade da sociedade contemporânea, prega o absolutismo de noss capacidade própria a partir do momento em que quisermos. É isso que origina, por exemplo, a visão dos jovenzinhos que, aos 20 e poucos anos, ainda que num emprego de merda (se é que são empregados), creiam-se senhores da própria vida. Afinal, se não vejo a conta do cartão de crédito (sou esperto o suficiente para conver meu pai a abrir uma conta dependente), de ninguém eu dependo.
São esses "os moços moderninhos, que em toda parte se sentem à vontade e que têm capacidade para tudo: é o estudante de escola superior ou faculdade, que em qualquer ambiente social está disposto a tocar jazz mecanicamente para os demais dançarem ou ouvirem [...] Este tipo de 'moderninho' se apresenta como o independente que assobia descontraidamente, contra todo mundo. Mas, no fundo, a melodia que assobia é a que todo mundo canta, e os seus estratagemas constituem, mais do que invenções do momento, experiências acumuladas no contato com os objetos técnicos impostos [...] As suas improvisações são sempre gestos de hábil subordinação àquilo que lhe é ditado pelos organismo dirigente". Por isso os moços ainda são, apesar de sua docilidade, machistas e as moças, apesar de sua pachorra, misóginas.
A transmutação dos valores não quer dizer adaptar seja o que for, a um argumento que faça mais sentido para o que queremos. Pelo contrário, envolve uma sensibilidade tão tirana quanto a razão, porém necessária. O resto, é simplesmente egoísmo burro. Deixemos que, de aparência, vivam os pintores do Renascimento.

domingo, 28 de outubro de 2012

Aquiles

No sonho, eu me encontrava num sítio conhecido, dos avós de um amigo de Americana. A disposição das casas e do terreno, entretanto, estava invertida.
Não sei quem eu acompanhava, ou talvez era ele quem me acompanhasse. Era um rosto conhecido, seguramente, mas que não consigo recordar. Homem mais velhos que eu, grisalho, da minha altura e magro, a não ser por uma sutil barriga de cerveja. Era, pelo que o sonho deu a entender, um zóologo, ou pelo menos tinha a zoologia como uma de suas ocupações.
No entanto, estávamos no sítio não desempenhando qualquer ofício, mas, como é de costume quando viajo para o interior, simplesmente passeando. Quando o Sol se pôs, precisamos limpar certas partes do terreno, algumas madeiras velhas e instrumentos de roça que se amontoavam no canto de uma das casas. Como é de costume, havendo a quantidade certa de calor, humidade e sombra, diversos animais se encontravam escondidos entre as toras. No espaço entre eu buscar qualquer coisa, ou tomar uma água, quem sabe, dentro da casa principal, meu acompanhante já havia limpado quase tudo, faltando apenas uma espécie de máquina cuja imagem não consigo recordar. Algo semelhante a um moedor de cana, desses presentes em barracas de feiras. Sendo a força de meu amigo, muito inferior à necessária para levar a máquina sozinho, me pus em direção a ele, após seu pedido de ajuda. Foi quando vi, reunidas num pedaço de chão, as cobras que ele havia retirado do meio da madeira. 
Eram dois grupos de cobras: um de cobras d'água, longas e esguias, inertes, mais parecendo peixe (talvez fossem peixes e não cobras), e outro grupo vívido, de pequenas cobras verdes e amarelas, pequenas, muito pequenas, emboladas entre si e agitadas. A visão me causou descoforto e arrepio instantâneos, mas contornei-as, pondo-me em direção à máquina.
Segurando bem na engrenagem, levantei a máquina com a ajuda de meu amigo e fomos em direção à casa principal, onde provavelmente alguém daria uma olhada na engrenagem, consertando-a ou vendendo-a, não importa.
Foi quando uma das mãos de meu amigo escapou da borda da máquina, e estancamos na caminhada, ambos com esforço, ele para recuperar a pegada e eu para compensar seu braço solto. E foi quando percebi que havia parado, descalço, em cima das cobras verdes, que se agitavam em volta de meu pé. Com meu grito de pavor, meu amigo recuperou a mão perdida e batemos em disparada, com grande força, em direção à casa, onde deixamos, finalmente, a engrenagem.
Sentados, assustados e cansados, senti minha perna dormir, e uma tontura me atingir. A cabeça pesou e os olhos começaram a se fechar, Uma estranha sensação de bebedeira me tomou, sendo seguida por enorme desconforto na perna direita. Neste momento fraquejei e me pus em pé, tentando recobrar algum controle. Mas levantei somente para ver que havia sido picado, por uma das pequenas cobras (cuja espécie, no sonho, se chamava "Llama"), no calcanhar. Exatamente no calcanhar. 
E fui avisado por meu amigo, de que não conseguiríamos o soro anti-ofídico necessário a tempo.

domingo, 14 de outubro de 2012

Beirute reivindica seu único santo padroeiro



"No dia 23 de abril de todo ano, os ingleses celebram o dia dedicado a seu santo padroeiro. Mas o verdadeiro São Jorge viveu em Beirute, onde o dragão foi morto. Esse extrato do livro mostra que a figura lendária ainda é parte da vida do povo libanês".

Meu tio Makhoul não acreditava em destino. Costumava sempre dizer: "Um homem pode sempre colher o que plantar”; enquanto meu outro tio, Abu Saadeh, declarava que "O homem não pode escolher seu destino... Está tudo escrito".

Quando a mulher de Abu Saadeh decidiu, num dia chuvoso, ir ao vilarejo vizinho de Abu Amha para dedicar votos na Igreja de São Jorge, o tio Abu Saadeh não a impediu, dizendo "Deixe-a ir. Ela terá o que quer que seja que o destino decidiu para ela".

Não tendo ela retornado após o crepúsculo, meu tio não saiu a sua procura, mas confessou sua preocupação de que "Talvez ela tenha sido presa para Abu Amer, a hiena".

Finalmente ela retornou, completamente encharcada, para nos contar sua dramática Aventura sobre como havia sido seguida o caminho todo, à distância, por Abu Amer. Estava convencida de que a hiena não se aproximaria pois "Mar Jiryus – São Jorge – a protegia desde a igreja aos degraus de sua casa”.

Desde então, a imagem de São Jorge cintila em nossa imaginação. Desde a infância nós acreditamos em seu poder, nosso próprio protetor contra todo mal: hienas, ladrões e maus olhos – ele era nosso patrono.

Anos depois, quando a guerra civil estourou e chegou a Mina Al Hosn, todos os hoteis, inclusive o de São Jorge, foram convertidos em baricadas.

Um dia eu fui visitar um amigo que vivia nessa área. Após cumprimentá-lo entre o barulho de canhões e foguetes, ele me olhou e disse sarcasticamente: “Parece que essa batalha é entre São Jorge de um lado e Al Khadr de outro".

No dia seguinte, eu vi fumaça vindo da area e fui checar meu amigo. Após muito tempo eu o encontrei sentado com seus parente e amigos no porão de uma velha casa. Então perguntei: "Digam-e meu amigo… quem venceu a batalha, São Jorge ou Al Khadr?" *

"Infelizmente o dragão"- respondeu ele entre os escombros.

São Jorge (Mar Jiryus em árabe) também conhecido, tanto entre cristão quanto entre muçulmanos, como Al Khadr – “o grande” – foi na verdade um libanês que viveu em Mina Al Hosn , em Beirute, no mesmo lugar onde o Hotel São Jorge foi construído.
Naquela época um dragão costumava aterrorizar os habitants da cidade periodicamente. O povo implorava ao governante para que cedesse à demanda da criatura para que entregasse sua filha como preço para a liberdade da cidade.
A princesa seria sacrificada em Bab As Serail, o portão leste da cidade. Mas São Jorge a resgatou e matou o dragão próximo ao golfo que, até hoje, leva seu nome.
Por essa razão, São Jorge ou Al Khadr, é considerado o único santo nacional para todos os cidadãos de Beirute, tanto cristãos quanto muçulmanos.
A chave para a adoção de São Jorge pelos ingleses é o cirstianismo e a presence cruzada na região.
Comumente, crê-se que São Jorge nasceu em Lydda, Palestina, e atingiu a alta patente do exército romano no qual serviu na Britânia. Tendo se tornado um cristão distinto, foi martirizado sob Diocleciano, em 23 de abril de 203 d.C. Dia ainda celebrado na Inglaterra como o dia de São Jorge após Eduardo III tê-lo proclamado santo padroeiro.
Mas não foi até o quarto século d.C que o primeiro monumento em honra ao mártir surgiu, tendo sido erigido no Líbano.
A mãe de Constantino, o primeiro imperador cristão, erigiu uma pequena coluna de marmore branco numa antiga capela Bizantina, no local onde o dragão foi morto.
Os cruzados construíram uma capela maior, transformada em mesquite em 1661. Agora a mesquita de Al Khadr ainda mantem as ruínas da capela cruzada do século XII.
 
Salam al Rassi. An Naas Bin Naas