quinta-feira, 3 de março de 2011

O Espaço da Antropologia no Pensamento: Lévi-Strauss por Merleau-Ponty

Em seu texto em homenagem a Claude Lévi-Strauss, Maurice Merleau-Ponty esboça uma rápida análise da Antropologia. Segundo o filósofo, a Antropologia, em seu início, havia pretendido tratar os fatos sociais como coisas, segundo bem conhecidas palavras de Durkheim e não como um sistema de idéias objetivadas. “Mas, tão logo tentava precisar o social, só conseguia defini-lo como ‘psíquico’. Tratava-se, dizia-se, de ‘representações’ que simplesmente eram ‘coletivas’ em vez de serem individuais” (MERLEAU-PONTY; 1980a: 193). Faltaria então uma penetração paciente no objeto bem como uma comunicação com este objeto. Uma reviravolta que começaria a dar conta desta problemática se inicia com Marcel Mauss - sobrinho e companheiro de pesquisas de Durkheim – que, ao conceber o social como simbolismo, explorando totalidades ou conjuntos articulados, pôde respeitar as realidades individuais e sociais sem torná-las impermeáveis umas às outras. Para que entendamos isto, basta que nos lembremos do pequeno ensaio sobre as práticas corporais, no qual ele mostra rapidamente de que modo a compreensão do corpo e de como lidar com o corpo são questões culturais: o nado, a marcha, a posição da mulher no parto.

Em Mauss, segundo Merleau-Ponty, já estaria contida a idéia de estrutura que será desenvolvida por Claude Lévi-Strauss. Idéia esta das mais complexas ainda que necessária à compreensão e ao estudo do método estruturalista, principalmente Levi-straussiano. Para Merleau-Ponty, o desenvolvimento das pesquisas estruturalistas teria causado uma inovação no campo das ciências humanas e da filosofia, a partir do momento que possibilitaria tanto às ciência quanto à filosofia, uma nova perspectiva para a resolução de problemas relativos ao comportamento humano, às organizações sociais e à própria compreensão da humanidade. Este texto tem como objetivo uma análise sobre a função e o objeto da Antropologia aliando-se o pensamento de Lévi-Strauss ao de Merleau-Ponty.

Alfred Kroeber, que Lévi-Strauss cita textualmente, dizia que qualquer coisa que não fosse completamente amorfa teria estrutura. Mas a noção de estrutura não dependeria de uma definição indutiva, fundada na comparação e na abstração de elementos comuns. O que se deve buscar na idéia de estrutura é a estrutura do sentido que esta própria idéia possui. “O princípio fundamental é que a noção de estrutura social não se refere à realidade empírica, mas aos modelos construídos em conformidade com esta” (LÉVI-STRAUSS; 1967: 317). As bases para a construção destes modelos não são nada mais do que as relações sociais. Elas que tornam, a partir dos modelos construídos, as estruturas manifestas e por se deter na complexidade e multiplicidade das relações sociais, a pesquisa estrutural não reivindicam um domínio próprio. Os fatos sociais deixam de ser coisas, como para Durkheim, e passam a ser estruturas: sistemas de parentesco, filiação, sistema de troca lingüística, de troca econômica, de arte. É a interação destes sistemas que compõem a sociedade e ao serem considerados como estruturas, distinguem-se das idéias cristalizadas, das mônadas das filosofias sociais.

Logo, é óbvio que a questão da definição da estrutura é um problema epistemológico, pois é ela mesma, um estatuto para o conhecimento. É preciso saber de que forma se operacionaliza o conhecimento, para que se saiba o que se conhece. Segundo Lévi-Strauss, a estrutura só pode ser observada a partir de modelos que supram quatro condições:

a) deve possuir um caráter de sistema. A modificação de um de seus elementos envolve a modificação do todo;

b) deve pertencer a um grupo de transformações cada qual correspondendo a um modelo da mesma família, constituindo um grupo de modelos;

c) deve ser passível de previsão da reação em caso de modificação;

d) deve ser construído de modo que seu funcionamento explique os fatos observados.

Para tornar esta idéia mais compreensível, tomemos o exemplo dado por Merleau-Ponty. Os sujeitos que vivem numa sociedade não tem necessariamente o conhecimento dos princípios que os governam. No que diz respeito às trocas lingüísticas, por exemplo, um sujeito falante não precisa, para falar, passar pela análise lingüística de sua própria língua. A estrutura desta língua é, antes, praticada por nós como óbvia. Não obstante, o modelo construído sobre a língua, a língua mesma, formal, é um sistema passível de transformações cujo modo de funcionamento explica a forma como se manifesta. Os modelos podem ser então, conscientes ou inconscientes, como no caso da língua, dependendo do nível em que funcionam. Um grupo de fenômenos se presta muito mais à análise estrutural quanto menos disponha de um modelo consciente para justificá-lo. Podem também os modelos serem mecânicos, como nas leis de casamento das sociedades primitivas nas quais os indivíduos são divididos em classes de parentesco ou clãs; ou estatísticos, como nas leis de casamento de nossa sociedade, que dependem de leis muito gerais.

Ainda que não possamos insistir na questão metodológica correndo o risco de nos afastarmos de nosso objetivo, a idéia relativa aos modelos é necessária para que se entenda o objeto de nossa análise: a idéia de estrutura. Quando se diz que a pesquisa estrutural tem por objetivo o estudo das relações sociais com a ajuda de modelos, e supõe-se que um modelo bem construído deva ser parte de um grupo de modelos, substituem-se as antinomias por relações de complementaridade. O grande problema que envolve a pesquisa antropológica é um problema inerente ao próprio objeto da Antropologia: a experiência antropológica é a de nossa inserção como sujeitos sociais num todo cuja síntese já está feita. Por outro lado, aí reside a tarefa mais específica da antropologia: o emparelhamento da análise objetiva com o vivido, o que faz com que a Antropologia viva as próprias convicções, a prova incessante de si pelo outro. A antropologia, principalmente pela análise estrutural, deixa de ser uma especialidade e se torna uma maneira de pensar. Para Merleau-Ponty, ao por em questão a alteridade, a antropologia traz à tona a discussão metafísica e fornece à filosofia um instrumento para o alargamento da razão, pois tem em vista um universal constituído por relações de complementaridade, desembocando, então, numa ontologia.

Além de Kroeber, citado anteriormente, Radcliffe-Brown também pensou a idéia de estrutura. Não só, o próprio termo “estrutura social” evoca diretamente seu nome. Mas em sua teoria, a estrutura aparece como um conceito intermediário entre os da antropologia social e da biologia. Radcliffe-Brown reduz os estudos de parentesco ao nível da morfologia e da fisiologia descritivas, não distinguindo claramente estrutura social e relações sociais. O empirismo de Radcliffe-Brown o fazia crer que a estrutura pudesse ser diretamente apreendida na realidade concreta, o que causou a crítica de Fortes, sustentada por Lévi-Strauss de que quando se busca a definição de uma estrutura, situa-se no nível da gramática e da sintaxe e não no da língua falada. Essa conexão com a lingüística não é à toa. O que Lévi-Strauss faz é aliar o método investigativo da lingüística ao da etnologia. O que Saussure havia feito com a lingüística será feito por Lévi-Strauss na Antropologia: trazer à tona estruturas inconscientes das relações sociais. Trabalhar no nível do significante, a partir do significado, trazendo, por exemplo, os estudos de parentesco para o plano comunicativo, pois, como herdeiro de Boas, Lévi-Strauss assume a idéia de que a natureza dos fenômenos sociais é inconsciente e assume, frente à lingüística, uma homologia de método e uma heteronomia de objeto.

Da mesma forma que a estrutura da linguagem é inconsciente, no fundo dos sistemas sociais aparece uma infra-estrutura formal inconsciente, como se a ordem da cultura humana fosse uma ordem natural. A noção de estrutura aparece assim como não sendo empírica, pois o que se observa empiricamente é a fenômeno manifesto inconscientemente: língua, sistemas de parentesco, crenças. O que se faz é, a partir dos fenômenos, criar modelos que nos permitam chegar às estruturas. Durkheim, por exemplo, tratou o social como uma realidade exterior ao indivíduo, como se o social fosse a base de explicação de qualquer fato.

“Mas o social só pode prestar esse serviço se não for uma coisa, se investir no indivíduo solicitá-lo e ameaçá-lo ao mesmo tempo, se cada consciência, ao mesmo tempo, se perder e se reencontrar na relação com as outras consciências, enfim, se o social não for ‘consciência coletiva’, mas intersubjetividade, relação viva e tensão entre os indivíduos” (MERLEAU-PONTY; 1980b: 184)

Deve-se, portanto, considerar os fatos como aspectos dos vínculos humanos, real e fantástico, tal qual elaborado pela civilização considerada. O que o estruturalismo é capaz de fazer, na medida em que identifica as bases inconscientes do mundo simbólico da cultura, é atingir a atitude humana que constitui o espírito de uma sociedade. Se seguirmos a idéia de Merleau-Ponty, a antropologia estruturalista retomaria a metafísica, pois esta existe onde quer que, cessando a vivência na evidência do objeto, apercebe-se a subjetividade radical de toda experiência. A acusação de anti-subjetivismo direcionada ao estruturalismo se torna, de fato, superação e mudança de foco na querela sujeito-objeto. Quando se buscam as estruturas relativas ao parentesco, por exemplo, por meio de modelos de casamentos, revela-se a coexistência de todo ser que se possa ter noção.

A metafísica serve de aporte a Merleau-Ponty para que ele pense a necessidade da Antropologia. Segundo ele, a metafísica seria o propósito deliberado de descrever o paradoxo da consciência e da verdade. A partir que do momento em que se reconhece a experiência como única e pessoal, abre-se o questionamento sobre o que não seja próprio, pessoal, isto é, eu. Essa vida individual desperta para o espanto da defrontação com os contrários. Assim compreendida, a metafísica é o contrário do sistema, pois a metafísica tem seu estofo nos objetos da experiência cotidiana e não cria, portanto, um mundo fantástico paralelo ao mundo empírico. Afirma, por outro lado, que o próprio mundo empírico é fantástico, repleto de evidências problemáticas e por isso mesmo, metafísico. A metafísica se torna, para solução destas problemáticas, o reconhecimento e a descrição dos paradoxos da alteridade da identidade fundantes da experiência e do pensamento. A própria vida, portanto.

Peguemos, por exemplo, O Pensamento Selvagem, de Lévi-Strauss. Logo no primeiro capítulo, Lévi-Strauss mostrará que a operacionalidade da razão entre povos de diferentes culturas, ou de diferentes “estágios”, enfim, povos ditos primitivos e povos modernos, se dá da mesma maneira. Por muito tempo acreditou-se que os indígenas só conhecessem da natureza aquilo que lhes era útil, seja para cura ou alimentação. A verdade é contrária a isso: a natureza não é conhecida porque é útil, mas útil por ser já conhecida. Os índios coahuilla, por exemplo, de uma região desértica da Califórnia, onde brancos mal existem, vivem na abundância, conhecem 60 plantas alimentares e 28 outras com propriedades narcóticas, estimulantes ou medicinais. Os exemplos são inúmeros: a língua tewa emprega termos diferentes para cada parte ou quase toda parte do corpo dos pássaros e mamíferos. “É claro que um conhecimento desenvolvido tão sistematicamente não pode ser função apenas de sua utilidade prática” (LÉVI-STRAUSS; 2006: 23).

O mesmo acontece com a magia, principalmente se tomarmos como referência a psicologia e a psicanálise.

Segundo o método da dupla crítica, peculiar à etnologia, trata-se [...] de ver a psicanálise como mito e o psicanalista como feiticeiro ou xamã. Nossas investigações psicossomáticas permitem-nos compreender a cura xamanística, ou, por exemplo, como o xamã auxilia um parto difícil. Mas o xamã também nos permite compreender que a psicanálise é a nossa feitiçaria (MERLEAU-PONTY; 1980a: 202).

A antropologia trata, então, neste contexto, não de dar a razão do primitivo ou mesmo de lhe dar razão contra nós, mas de instalar, uns e outros, num terreno em que sejam inteligíveis. Torna-se então, necessária, pois alarga nossa razão de modo a torná-la capaz de compreender aquilo que, tanto em nós quanto nos outros, precede e excede a própria razão. Merleau-Ponty insere esta ordem humana como advinda da função simbólica. Tempo, história, trabalho como negação da natureza, só podem surgir numa “ordem simbólica”, que se caracteriza com o possível e com o porvir. Aí, a antítese entre natureza e a cultura torna-se menos nítida. Suscita, além disto, o problema da historiografia: é preciso despertar o passado, repô-lo no presente. Problema relativo ao anacronismo, discutido por Lucien Febvre, que mostrou que o problema da descrença no Século XVI, todo o universo mental de Rabelais, não pode ser descrito em nossa linguagem, nem pensado com nossas categorias. Nesta questão, o estruturalismo é capaz de pensar o mundo fora dos acontecimentos situados no tempo datado, se instaurando numa história que sabe o mito e os empreendimentos humanos para além dos acontecimentos parcelados.

Deste modo, para Merleau-Ponty, a Antropologia prestaria um serviço à Filosofia: o de alargar a razão ao desembocar numa ontologia na qual não a velha dicotomia sujeito/objeto, poderia ser superada. Isto não significa, é claro, que a Antropologia tomaria o lugar da Filosofia. A questão, para Merleau-Ponty, é que a Filosofia não pode dispensar as categorias científicas, assim como as ciências não podem dispensar os conceitos filosóficos. De modo geral, a Antropologia seria uma grande recusa e, por isso, traria tantos benefícios tanto à ciência quanto à filosofia; se recusa a aceitar o dado como real. Aí, neste ato aparentemente simples, estaria contida a possibilidade de um verdadeiro progresso no pensamento humano, no momento em que este tomaria como pressuposto a inteligibilidade, a identificação, ou, nas palavras de Merleau-Ponty, a comunicação entre as coisas, que falam conosco. Só precisamos nos concentrar um pouco, que as entenderemos.

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Bibliografia

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

_____________________ O Pensamento Selvagem. Campinas: Editora Papirus; 2007.

MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss a Claude Lévi-Strauss. In. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980a.

______________________ O Metafísico no Homem. In. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980b.

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