segunda-feira, 7 de março de 2011

Os fados do Arlequim.


Agora que começava o carnaval, eu havia me esquecido das dores. E a infecção, que havia começado pelo baço, parecia nem existir. Carnaval não é tempo de tristeza; pelo menos, é um tempo em que fingimos não estarmos tristes. A única coisa que eu queria era pular e brincar o carnaval, como quase todos os anos eu havia feito durante minha vida. Primeiro com a família, fantasiado de pirata, palhaço, astronauta, super-herói, jogador de futebol, desenho animado - pelo menos dos 4 aos 10 anos, quando começa minha memória e até quando deixei de me fantasiar - e depois com os amigos, nas noites que terminavam com todos os amigos separados, cada um com uma, aí já nos fantasiávamos de mulher e bebê, como os antigos foliões de rua.

E assim seria. Eu brincaria, pularia, cantaria, dançaria. Voltaria para casa com o sol a nascer. Isso se voltasse.

O engraçado é que, no fundo, eu sempre tive uma certa aversão por carnavais, ainda que me sentisse insuportavelmente atraído. Esse momento em que, para mim, fingíamos não sermos tristes me parecia um pouco falso, um pouco desonesto. Eram três dias para sorrir e o resto da vida para chorar, como dizia a música. E isso me parecia errado. Essa festa da qual tantos antropólogos falaram. Para alguns era um momento de igualdade social total no qual os chefes e os empregados farreavam juntos. Momento sem mando ou obediência, o que para alguns só servia para reproduzir o status quo, sendo um momento catártico de que a sociedade dependia para que se reproduzisse. Eu acreditava nisso. Mas acreditava também em outra coisa, da qual ciência nenhuma podia explicar. Algo que só podia ser compreendido na arte da festa, no encontro dos corpos, na profanação da ordem.


Ilustração de Lucas Armendani

A rua começava a encher. Os foliões chegavam, alguns já bêbados e estrábicos. Muitos abraçados num torvelinho de cores e roupas - ou falta de roupas - que deixavam o clima mais pesado. Minha saída era, com certeza, me entregar aos deleites do álcool, algo que sempre fiz com pouca dificuldade. Centenas de olhos entrecruzavam-se. Uns com malícia, outros com desdém ou indiferença. Os meus guiavam-se perdidamente na tentativa de arrebatar-me com olhos novos. Doces olhos femininos, partes, de preferência, de um corpo jovem e curvo, suado, quente. No meio da multidão, que começava a cantar as marchinhas tão queridas cujas orignes já a maioria esquecera, para minha surpresa eu fui encontrado por um par de olhos amendoados, verdes, com longos cilhos postiços de colombina. Olhos proporcionais ao rosto fino com uma boca carnuda e vastos cabelos cacheados a cobrir as orelhas.O corpo esbelto de bailarina, metido num maiô de zebra fugia-me da visão de forma estranha, porque os olhos estavam ali sempre ao meu alcance. Agora que a multidão saía em procissão - isso, carnaval é isso mesmo, uma procissão, uma grande marcha por redenção - tornava-se mais difícil ainda encontrá-la e minha vontade de seguí-la perdeu-se na turba desenfreada.

O que é o carnaval? pensei. Por que? Por que essa sede de viver até a morte? Por que desta vontade de nos acabarmos na festa? Esse desejo pulsional de não precisarmos acordar no dia seguinte? E por que eu, logo eu,consigo sentir-me morrer nos olhos de alguém que já se foi? Como pode homem criar algo tão belo daquilo que parece ser, para mim, a maior das tristezas? Mas, bem, de tristezas belas talvez eu entenda. Eu! Eu só não, todo o mundo. A história do mundo foi feita de belas tristezas. Talvez os momentos de felicidade sejam mesmo páginas em branco na história. Hoje, no entanto, não me importa. É carnaval. O poeta sou eu!

Um comentário:

  1. "Carnaval não é tempo de tristeza; pelo menos, é um tempo em que fingimos não estarmos tristes"
    O que fazer a não ser se entregar "aos deleites do álcool"?! Não é tão fácil fingir sem álcool...

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