sábado, 10 de julho de 2010

Emergência de uma nova Antropologia

A seguir, outro texto redigido por mim baseado na análise de parte da obra de Georges Balandier. O texto, curto, dtém-se principalmente sobre a crítica de Balandier à Antropologia contemporânea e baseia-se principalmente em: Antropo-lógicas; Antropologia Política e; As Dinâmicas Sociais, sentido e poder.
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De acordo com Hegel, em suas Lições Sobre a Filosofia da História Mundial, os homens ditos primitivos se encontram abandonados à margem da história, são como máquinas que funcionam no vazio em sobrevivência anacrônica. Elas desconhecem o trabalho do negativo, ou seja, da transformação temporal. E somente o que não é atravessado pela dúvida e pelo desespero pode fugir da ação do tempo. A China e a Índia forma, para ele, povos que perduraram sem história. Já a Pérsia, tendo sido o primeiro império que desapareceu, foi o primeiro povo histórico, sofrendo com a ruína e a queda, processos para ele naturais.
Os povos históricos são, assim, aqueles cujo negativo emerge em seu interior, nos quais a violência externa não é determinante. Isso significa dizer que nas sociedades sem história, o desaparecimento da civilização é efeito de uma catástrofe que lhe é extrínseca. Sua estabilidade e sua “fraca temporalidade” fazem com que sejam vulneráveis aos arbítrios externos, de modo que o negativo que as destrói vem de fora. A história destas sociedades se firma, assim, como uma “história sem história”, repetição de uma mesma ruína: o novo elemento que substitui o anterior sempre perecerá.
Para Georges Balandier, em Antropo-lógicas, a recusa pela história na análise antropológica, herdada da tradição neokantiana, hegeliana e durkheimiana, foi corrente até a metade do século XX, o que mostra o atraso da ciência em relação à sua ciência irmã, a Sociologia. Por isso, o objetivo principal deste antropólogo será cunhar uma antropologia da modernidade, uma antropologia do atual, uma vez que o ofício do antropólogo - de interpretar sociedades e culturas firmadas na diferença - e a do sociólogo – de apreender a própria sociedade no que esta revela de si mesma nos problemas atuais - entraram em crise na primeira metade do século XX: a Sociologia por não conseguir se distanciar das categorias próprias das sociedades ocidentais industrializadas, com a idéia de ser sempre o regime “que rege a produção que determina o ponto principal do debate”[1]; e a Antropologia por se firmar como pesquisa meramente de sociedades arcaicas, sem notar a relação destas com as sociedades de onde provinham os próprios pesquisadores, fechando os olhos para o diálogo entre si mesma e outros campos de saber.
Desse modo, observando a emergência da antropologia crítica, que insere suas considerações no campo de certo tipo de antropologia fundamental, alguns antropólogos se deterão na questão do trato entre as sociedades desenvolvidas e aquelas ditas arcaicas ou primitivas, observando que este trato não engendra necessariamente, a deserção do “atual”. O primeiro destes antropólogos havia sido Franz Boas. Retomando esta atitude, de revisão e intersecção entre antropologia e outras ciências e saberes, a fundamentação de uma antropologia do moderno será traçada, sendo que o primeiro passo será o de uma definição e intitulação coerente daquilo que seja a modernidade. Esse conceito, reformulado, trará a idéia de que as sociedades tradicionais e aquelas chamadas de históricas, não são como até então haviam sido interpretadas, contrárias, sendo uma o negativo da outra.
Balandier se preocupa, neste ponto de vista, com a questão da colonização, na qual se efetivam os contatos entre as sociedade tradicionais e as modernas, pois por eles se consolidarão os dinamismos e os movimentos históricos que transformam os sistemas de instituições das sociedades, dos quais a Antropologia Política deve se encarregar de interpretar. Ou seja, é pelo contato entre as sociedades tradicionais e modernas, que ambas se transformarão, sem necessariamente se esfacelar, mas criando algo novo e é dessas transformações que o antropólogo deve se responsabilizar. Por isso, o estudo das sociedades tradicionais necessariamente perpassa a reflexão do estatuto da modernidade.
È estudando a África negra que Balandier nos mostrará a evidenciação das conseqüências políticas imediatas da situação colonial. Essas conseqüências serão divididas em cinco características principais:
a) A desnaturação das unidades políticas tradicionais – O Reino do Congo, por exemplo, foi teve seu território cortado em pedaços no momento das partilhas coloniais com o Tratado de Berlim;
b) A degradação pela despolitização – Transformam-se os problemas políticos em problemas técnicos, dependente da competência administrativa;
c) A ruptura dos sistemas tradicionais de limitação do poder – Falseia-se a relação e as obrigações recíprocas já não parecem tão nítidas. As relações de poder, opinião pública e religião são perturbadas pela existência do fato colonial;
d) A incompatibilidade dos dois sistemas de poder e de autoridade - o fato colonial introduz forçosamente a existência de outros tipos de relação de poder e subordinação, o que impele à racionalização, entendida weberianamente, o modo de governar tradicional;
e) A dessacralização parcial do poder – O poder do soberano e dos chefes tradicionais se legitima antes por referência ao governo colonial que por referência aos antigos processos rituais.
Embora essas características possam diferenciar entre as sociedades, o ponto principal é que a colonização e o contato entre sociedades históricas e a-históricas se deu geralmente de modo à subjugar um ou outro tipo de organização social. De modo que é

“pela modificação das estratificações sociais que o processo de modernização, aberto no momento da intrusão colonial, influi indiretamente na ação política e suas organizações. Ele põe a funcionar s geradores de classes sociais constituídas fora do quadro estreito das etnias”[2].

De modo geral, é observável que na maioria dos países sujeitos à colonização e, posteriormente, à descolonização, os efeitos acumularam-se de modo a degradar em demasia os poderes antigos para que estes pudessem se remodelar sob um aspecto moderno e à incapacidade de provocar além dos limites étnicos, as mudanças que fariam da nova estratificação social o único gerador da atividade política moderna.
Acima de tudo, o fato colonial transforma ambas as sociedades. Correntemente, a mais afetada será aquela de molde tradicional. Não obstante, a noção de “tradicionalismo” ainda carece de uma definição precisa. Geralmente essa noção é definida como continuidade, enquanto a modernidade é ruptura; define-se pela conformidade a regras imemoriais, geralmente míticas, transmitidas de diferentes formas. A análise deve se voltar deste modo, para a configuração atual do que seja o “tradicional”, uma vez que aquelas sociedades tradicionais sofreram transformações das mais diversas com o fato colonial. Só deste modo, a Antropologia Política dará conta de uma análise que preencha as lacunas deixadas pela colonização e pela descolonização. A primeira expressão, das quatro apontadas por Balandier, da configuração do tradicionalismo atual é:
a) o tradicionalismo fundamental - aquele que tenta salvaguardar os valores das organizações sociais e culturais garantidos pelo passado;
b) o tradicionalismo formal – geralmente coexistente com a figura precedente, definindo-se pela “manutenção de instituições, de quadros sociais ou culturais, cujo conteúdo se modificou; da herança passada, só se conservaram alguns meios – as funções e as finalidades modificaram-se”[3];
c) o tradicionalismo de resistência – quando existiu, serviu de anteparo ou camuflagem que permitia dissimular as reações de recusa frente ao colonizador. Frequentemente ocorreu no plano religioso;
d) o pseudotradicionalismo – no qual a tradição manipulada torna-se o meio de dar sentido às realidades novas, ou de exprimir uma reivindicação marcando a dissidência em relação aos responsáveis modernistas. Conjuga-se intimamente com a expressão precedente.
Aliando estes componentes, uma análise antropológica consistente, se dá pelo diálogo entre o tradicional e o moderno, do ponto de vista das defrontações políticas que se expressam, não exclusivamente, de fato, por esse embate. Assim o fazendo, a Antropologia Política deve determinar as unidades e níveis de inquérito em que a análise será suscetível de atingir uma eficácia científica crescente. Balandier reconhece algumas destas unidades:
a) a comunidade aldeã – Constitui uma sociedade reduzida, como fronteiras precisas, nas quais se reconhece com nitidez a defrontação entre tradicional e moderno, sacral e histórico. No seio dessas comunidades há uma cisão entre o domínio da vida interna – dado pela tradição – e o da vida externa, que organiza as relações múltiplas estabelecidas com “exterior” – ande se impões as forças e os agentes modernos. Esses fatores modernos são geralmente constatados alheios às sociedades aldeãs. Não obstante, essas comunidades são as que explicitam melhor a dinâmica em que se determinam, em estado nascente, novas estruturas em que as incidências da ação política moderna se manifestam de maneira mais imediata. São as unidades de pesquisa mais pertinentes, de acordo com Balandier;
b) o partido político, instrumento “modernizante” – A insurgência de partidos representa a forma de organização de Estados nascentes ou renascentes. É o primeiro dos meios de modernização e é quase geral nas sociedades descolonizadas;
c) a ideologia, expressão da modernidade – a ideologia política surge, no caso da África negra, estudada por Balandier, no momento revolucionário e de mudanças profundas das sociedades, colocando-se sobre as ruínas dos mitos. Geralmente alimentam projetos de construção nacional, marcadas pelas reações à situação de dependência. Atua como um new deal emotivo, dividindo-se num discurso destinado às elites políticas e intelectuais e num outro discurso de adaptação das palavras da tradição às populações camponesas e às camadas sociais menos marcadas pela educação moderna. Levada ao extremo, essas ideologias assumem aspectos utópicos e milenaristas.
São essas ideologias que constituem, para a Antropologia Política um terreno de investigação rico de problemas mal elucidados. É essa trilha que nos interessa, que nos abre a possibilidade de estudar aquilo que o mito tradicional encerra de ideologia política e aquilo que as doutrinas políticas encerram de mito. É esse o ponto de intersecção que nos chama para a não contrariedade total entre sociedades modernas e sociedades a-históricas. “Esse problema é o da dialética permanente entre tradição e revolução”[4].

[1] BALANDIER, Georges. Antropo-lógicas. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 241.
[2] BALANDIER, Georges. Antropologia Política. São Paulo: Difusão Européia do Livro, Editora da Universidade de São Paulo. p. 155.
[3] BALANDIER, Georges. Antropologia Política. Op. Cit. p. 160.
[4] BALANDIER, Georges. Antropologia Política. Op. Cit. p. 171.

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