sexta-feira, 18 de junho de 2010

O homem induplicável

Eis que hoje, durante o intervalo entre um café e outro, ouvi por terceiros que Saramago havia morrido. Recusei-me a acreditar de início; achei ter ouvido errado. Infelizmente não.
Nunca procurei ter ídolos, mas hoje me pergunto até que ponto admiração não é também, idolatria. De qualquer modo, esta discussão não tem lugar aqui.
Este texto deve se tratar de uma despedida, de uma homenagem a um escritor que tem cada vez mais a ensinar e cuja profundidade e significado da obra só poderá começar a ser compreendida daqui a alguns anos.
Saramago, segundo a maioria dos que os conheceram, era um cavalheiro. Era gentil, ainda que defendesse veementemente suas idéias e possuísse um ar sério. Isto eu mesmo pude sentir, numa primavera de 2005 por ocasião do lançamento de As Intermitências da Morte no SESC Pinheiros. Eu tremia ao entregar eu livro para que ele o autografasse e engasguei na tentativa de agradecer. Mas pude olhar em seus olhos e apertar suas mãos firmes - impressionantemente firmes para um senhor de já 82 anos de idade -e sinceramente duvido que me esquecerei de seu breve "obrigado" dito olhos nos olhos. Austero porém doce.
Em tempos de fins de utopias, Saramago, aquele velho comunista, nos mostrou que a vida vai além das ideologias e crenças. Sua própria vida foi o palco de sua literatura: um homem que na medida possível do humano, foi ético.
Acima de tudo, acredito que Saramago tenha deixado um legado para a juventude. Sua obra será compreendida à medida em que nós jovens, que vivemos com toda a intensidade o que mais tarde será conformismo, a conservarmos. A literatura de Saramago foi o reencontro da experiência do homem maduro com o caráter destrutivo do jovem. Se é necessário criar um sentido para a vida, que seja o de vencer a morte, que como o próprio Saramago dizia, só se alcança pelo amor.
Uma vez, Saramago disse em O Homem Duplicado, que nem todos os verbetes de todos os dicionários conteriam metade dos termos que precisamos para entendermos uns aos outros. Por isso, na obra deste materialista, marxista, comunista, os sentidos foram tão exaltados e sempre, entre os homens, algo ficou por ser dito e que, exatamente por isso, foi compreendido.
Nunca houve algo novo na crítica de Saramago. Nada do que ele tenha dito já não era óbvio, perceptível e claro. A cegueira, a prisão na caverna platônica, a ilusão dos sistemas políticos. Seu mérito está na forma em que tratou disto: sem sistemas, sem retórica, sem falácias. Exatamente por ser um romancista, por ser um ficcionista, criou livremente e expressou com toda clareza aquilo que parecia ter ficado para trás. Não à toa, escreveu um Manual de Pintura e Caligrafia. Sua própria obra é uma pintura: cria-se a cada golpe de pena, uma sobre a outra e o tod é mais do que a soma das partes. Restam em seus romances muitas coisas a serem ditas e por isso suas histórias não se esgotam. Saramago não quis expor a realidade, mas sua própria obra é a realidade.
Poderíamos criticá-lo por ser a certo ponto antiquado: vale-se de categorias antigas como dignidade, direitos, honestidade. Se ele buscou tais coisas em sua vida, foi porque não via o erro do projeto humanista, mas a completa inexistência real de séculos de planejamente por sociedades mais justas, nas quais as pessoas pudessem usufruir de suas próprias vidas.

"As misérias do mundo estão aí, e só há dois modos de reagir diante delas: ou entender que não se tem a culpa e, portanto, encolher os ombros e dizer que não está nas suas mãos remediá-lo — e isto é certo —, ou, melhor, assumir que, ainda quando não está nas nossas mãos resolvê-lo, devemos comportar-nos como se assim fosse".
La Jornada, México, 3 de Dezembro de 1998
Saramago deixa-nos um legado imenso, de valor não só literário como ético. Em dias em que se questiona o fim da literatura, das artes, do sujeito e de todas as categorias modernas, Saramago nos mostrou que há ainda, algo a dizer, mesmo que seja pelo silêncio.
Foi-se o homem, fica a obra. A morte é só a morte do organismo. O resto ainda pulsa.
Cabe a nós não deixarmos que também a obra se vá. É nossa a missão de que não se deixe ir a luta incessante de, a cada dia, a cada minuto, abraçar com todo o amor do mundo a vida com todo seu peso, longe do descaso e da opressão, da razão cega e das paixões burras, da caverna e das sombras.

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