quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Pasqualino Sete-Belezas

Acabo de assistir a Pasqualino Settebellezze, de Lina Wertmüller, filme de 1975. Nele, um condenado napolitano é preso, alega insanidade e vai parar num manicômio, para dela sair e servir à Itália na guerra, momento em que resolve fugir e acaba capturado e preso pelos nazistas. Os horrores que ali o aguardam mal podem ser imaginados e mesmo sendo o tema um clichê - não só tema do nazismo, mas do absurdo fascista - o filme traz uma série de reflexões.
O que diferencia um "criminoso" de outro? O que diferencia um assassino mafioso de um chefe de campo de concentração? Há tanta diferença entre o crime burocrático, aquele genocídio sistemático dos Estados contemporâneos (não só os fascistas) e aquele passional ou então, "comunitário", ou seja, local, motivado por questões próprias? Ora, Pasqualino é um desses, criminosos locais, malandro que pensa poder se safar de qualquer encrenca. Mas ao se ver frente a frente com os burocratas nazistas, percebe-se subitamente uma vítima, disposto aos mais sujos atos para sobreviver: dar conta da oficial da prisão e condenar prisioneiros. Na fala da oficial, uma alegórica gorda alemã, Pasqualino é um verme patético, alguém que, disposto a viver, é capaz de tudo, o que só pode ser ridículo, baixo e nojento.
Mas o que realmente me fez pensar, dentro de toda a história, é de que forma o nazismo expôs com toda crueza a vida moderna. Correntemente falamos no grande tabú do Século: o Holocausto e o extermínio de judeus, esquecendo-nos do extermínio de ciganos, homossexuais e deficientes; esquecendo-nos também dos órfãos ingleses, dos franceses expatriados e mesmo dos alemães, holandeses, noruegueses, dinamarqueses que lutaram contra isso. A primeira coisa que posso afirmar é que sofrimento não se mede,ainda mais se tal sofrimento foi, como dizem os que o viveram, inimaginável para os que não o presenciaram. Por isso mesmo não deve ser parâmetro de argumento, ainda que deva viver na memória.
Em segundo lugar, fico pensando no modo que o nazismo demonstrou ser, ele mesmo, uma produção não de uma Alemanha ou de um louco austríaco, mas de toda uma mentaldiade que vinha se desenvolvendo nesta época. Ninguém foi inocente em relação ao totalitarismo. Nem o Japonês, nem o Alemão, nem o Soviético ou qualquer que seja. O confronto de Pasqualino e da oficial mostra o quão banal é não mal nazista, o mal burocrático, mas qualquer mal. A crença no mal banal só pde ser construção de alguma religiosidade que prega que todo mal deva vir acompanhado de um pesar, de uma dor de cabeça ou um transtorno de consciência. Os totalitarismos simplesmente expuseram todo o mal que já vinhamos fazendo a nós mesmos e, ainda que ninguém seja inocente, as vítimas existem e puderam relatar.
Ao mesmo tempo em que o mundo viveu, com o fascismo, os maiores horrores que podíamos imaginar - porque esses horrores só podem ser mesmo fruto da imaginação para que um dia pudessem vir a existir, ou seja, eram horrores latentes na mentalidade humana - nos deu ao mesmo tempo a missão de uma sociedade a vir, de uma comunidade política que vem, ou deve vir. Essa grande ferida do Século mostra ao mesmo tempo que somos tanto algozes quanto vítimas, que somos Pasqualinos inquietos, que nossa culpa não justifica nossa vitimização e vice-versa; que para além do que somos, há algo que somos em conjunto.
Mas, sendo os horrores dos homens nessa longa história que inventamos, incontáveis, parece que nos acostumamos a sofrer e a só pela dor sentirmo-nos vivos, encondendo-nos sob religiões e "altos-astrais", sob romances e novelas. Quem sabe um dia, no entanto, esses falsos ídolos caiam e esses horrores sirvam, finalmente - porque parece não haver soluções ou meios de não vivê-los - a responder, como Pasqualino, com os olhos duros e incrivelmente sem lágrimas que sim, estamos vivos.


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