quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Quando um governo age como uma tribo, é necessário um pastor para seus burros.


Eu trabalhei por vinte anos como empregado em diversos departamentos governamentais no Líbano. Durante este tempo, eu nunca recebi um sinal de apreciação ou prêmio, ou mesmo uma promoção simplesmente porque eu me recusei a ser um protégé de um governante ou homem do clero.
Eu segui o conselho de meu tio, que costumava alugar burros (mkari), e sempre dizia: “Não ate seu cabresto na manjedoura de políticos, pois uma vez que você o faça, eles o considerarão fraco”.
Como eu não possuía nenhuma conexão com gente influente, eu costumava carregar não só o fardo do meu trabalho, mas também daqueles que eram mais altos do que eu em status, ainda que muito menos inteligentes.
Eu descobri que alguns empregados civis do governo não assumem qualquer responsabilidade uma vez que se consideram os verdadeiros “filhos do governo”. Diferentemente do resto dos oficiais e empregados, eles costumavam trabalhar de acordo com a regra que diz: “Ao invés de resolver um problema, passe para outra pessoa, até que Deus dê conta”.
Entretanto, eu costumava me consolar toda vez que me lembrava das palavras das velhas pessoas que na minha cidade costumavam repetir: “Uma pessoa digna deve ser como o sempre verde carvalho que uma vez cresceu na praça de nosso vilarejo e costumava atrair o gavião para o seu topo e os coelhos selvagens pastando em sua sombra”. Mas eu me sentia e continuava a sentir-me triste toda vez que me lembrava de que forma os turcos haviam cortado aquela árvore antes que fossem expulsos de nosso país pouco depois da Primeira Guerra Mundial.
Um dia, um cidadão entrou em meu escritório para perguntar sobre o destino de um arquivo, que me havia sido enviado naquela mesma manhã de outro departamento. Enquanto lia, descobri que havia sido passado de um oficial a outro vinte vezes. Foi surpreendente descobrir que qualquer um dos oficiais poderia ter terminado a autorização e salvo o pobre tipo de vinte viagens ao ministério.
Após ter escrito meus comentário sobre a petição que eu havia datilografado, eu mesmo levei o documento à instância maior, fiz com que fosse assinado, levei de volta à minha mesa, registrei o documento no livro oficial e finalmente levei ao homem que esperava e observava meus movimentos com surpresa.
Ele me agradeceu e, com sinais de assombro em seu rosto, disse: “Posso lhe fazer uma pergunta?”.
“Claro” – eu disse.
“Eu gostaria de saber qual é seu cargo aqui”.
“Sou pastor de burros” - eu respondi .
“O que quer dizer com isso? Não entendi” , perguntou o homem.
“Você tem tempo para ouvir uma curta história?” – eu disse. “Sim, tenho todo o tempo” – ele respondeu.
Então eu contei a história:
“Uma vez, um homem procurou refúgio numa tribo. O líder da tribo o acolheu e o apresentou ao restante do clã.
‘Este é o Sheikh dos Árabes, Hmaydan. E este é o líder da tribo Shiwan. E este é o príncipe de nosso povo, Abu Swaydan’.
Então todos fitaram o homem e perguntaram: ‘E vós, quem sóis?’
‘Eu sou o pastor de burros. Eu soube que necessitavam de alguém que levasse vossos burros ao pastoreio... então aqui estou eu’.
‘E como sabias que precisávamos de alguém para pastorear nossos burros?
‘Bem, se cada um de vós sois ou Sheikh, ou líder, ou Príncipe, quem haverá para ser o pastor?’”
Quando eu terminei minha história o homem olhou para mim e disse: “É verdade”. E emendou: “Quando o governo age como uma tribo, com certeza precisa de alguém que leve os burros ao pasto...”.

AL RASSI, Salam. An-Naas Bin-Naas

domingo, 5 de agosto de 2012

Teses Cabalísticas sobre a Confiança

1. Pessoas sem vícios não são confiáveis;
2. Pessoas sem preconceitos não existem. Por isso as que se pensam como tal, com certeza não são confiáveis;
3. Pessoas 'boazinhas', são boas por algum motivo, que diz respeito somente a elas. Não confie!
4. Quem possui um cachorro que não obedece, não possui autoridade alguma. Sob qualquer pressão elas cedem. Não merecem, por isso, sua confiança;
5. Greve de fome é algo por demais violento. Assim sendo, a não-violência de Ghandi foi relativa. Cuidado com os pacifistas contemporâneos.
6. Quem ama o feio, possui algum interesse. Quem confunde atração com beleza ou é inocente ou é falso. Por via das dúvidas, não leve muito a sério.
7. Como disse Burroughs, as mulheres mais baratas se tornam, com o tempo, as mais caras. Nada mais precisa ser dito.

Sinais Honrosos Sempre Aparecem na Face de Homens Honrosos

O Sheik Abu Ali Sayyagha era um dos homens mais respeitados de seus dias. Ele era capaz de, quando fosse que encontrasse alguém pela primeira vez, adivinhar que tipo de pessoa esse alguém era: estúpido ou esperto,  generoso ou avaro, honesto ou não. Simplesmente mirando os rostos, uma ciência naquele tempo conhecida como fisiognomia.

Antes que carros fossem feitos, o Sheikh se encontrava um dia viajando a pé de Hasbayya a Jdeidet Marjeyoun (Sul do Líbano).

Quando ele atingiu a intersecção de Souq El Khan, o Sheikh encontrou um homem montando um burro indo na mesma direção. Quando o homem se aproximou dele, o Sheikh mirou sua face e disse a si mesmo: “Eu não gosto dele... não é um homem honesto”. O homem desmontou de seu burro, correu em direção ao Sheikh e perguntou: “Para onde te diriges?”.

“Jdeidet Marjeyoun”, respondeu o Sheikh. O homem disse, então, em bom som: “Que sorte tenho eu. Também para aí me dirijo”. E então insistiu para que o Sheikh montasse no burro. O Sheikh hesitou e pensou por um momento: “Como pode tão nobre gesto vir de alguém que me parece de tal modo desonesto?”. E pensando isso ele olhou novamente para o homem somente para ver sinais da desonestidade em seu rosto.

O Sheikh se desculpou de uma forma gentil dizendo: “Não, obrigado... Mas eu prefiro caminhar”. Mas o homem insistiu: “É impossível que caminhes enquanto eu monto” – e disse mais –  “Alguém que conhecemos pode passar por nós e se impressionar com quão rude e grosseiro eu seria. Não, não, deves montar, eu insisto”.

O Sheikh finalmente montou o burro, apesar de sua vontade. Toda vez que ele parava e ameaçava desmontar, o homem se punha em seu caminho ameaçando rasgar o abdômen do burro com sua adaga.

Durante o percurso o homem tagarelava sobre sua devoção e respeito aos homens do clero, algo que começou a preocupar o Sheikh ainda mais: “A mim esse homem me parece infernal, mas seu comportamento me mostra que ele é um homem de honra. Acredito que eu tenha um problema aqui. Talvez eu precise reconsiderar, de agora em diante, a maneira que eu julgo as pessoas. Se meu julgamento deste homem estiver errado, então talvez eu tenha julgado mal outros… e esse é um problema sério porque então, eu talvez perca a confiança das pessoas em mim”.


Chegando em Jdeidet Marjeyoun, o Sheikh desmontou do burro e foi-se embora…

Salam Al Rassi
O homem correu atrás do Sheikh dizendo: “Mas Eminência, não me pagaste a taxa do burro…”. O Sheikh perguntou: “Sim, é claro, quanto quereis?”. O homem respondeu: “Meio Majidi”.

 O Sheikh fitou o rosto de homem e lhe disse: “Escutai, meu amigo. Somente a verdade prevalece no fim. Eu sabia que tipo de pessoa és desde a primeira vez fitei vosso rosto, mas me preocupaste sobre o modo que leio as pessoas...” – e continuou – “Aqui está um Majidi completo e estou muito feliz que eu não estava enganado a vosso respeito”.

Salam Al Rassi. Li-alla Tadhi (Ainda que se percam).

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Pense o que quiser

Superar a si mesmo é uma questão puramente ética. Superar aos outros, é uma questão moral. Concluam.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Quisera minha voz

Quisera minha voz,
Só para cantar fosse.
Ou nomear.
Os pássaros falam cantando.
Mas eu, tão ofensivo,
quando cala o desafio
falando sou,
o cruel que condeno.

Quisera minha voz
Só para cantar fosse.
Ou para criar nomes.
Nomes e coisas.
Coisas de pássaro,
coisas de flor.
Pois nomes já têm
as coisas de dor.

Palavras coisas, nomeadas.
Nomes novos,
coisas novas.
Quisera eu, a voz
nomeasse, atroz,
as coisas que eu nem sei.

Quisera minha voz,
Só para cantar fosse.
Ou declamar,
em versos, falar.
Versos de nomes,
só nomes quisera
minha voz declamar.

Os pássaros só falam cantando.
Quisera minha voz,
sem o problema atroz,
da distância da alma à língua,
só para cantar fosse,
Ou declamar,
em versos, falar.
Coisas de pássaro, coisas de flor.
Os pássaros falam, cantando.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Manifesto


Encontrado numa folha amassada num albergue da juventude, o manuscrito com certeza escrito por alunos brasileiros, foi passado a um ex-aluno da PUC-SP - atualmente desempregado - por um traficante marroquino em Paris. Certos trechos estão rasurados e ilegíveis. Além disso, o manifesto dá indícios de uma continuação, provavelmente perdida, dado que conta o estudante, que ele e o traficante marroquino usaram - pelo pouco que ele se lembra - a folha anexada para bolar um baseado.

"Somos herdeiros diretos da Revolução Neolítica, da Reforma Protestante, da Comuna de Paris, Revolução de Outubro, Primavera de Praga, Maio de 68, Woodstock, Diretas [rasurado]; contemporâneos dos irmãos árabes em sua primavera. Esta herança se expressa diretamente nas ricas manifestações culturais de alto teor político-engajado-reivindicatório de corrente estrutural-estruturante-estruturada como o [um longo trecho rasurado se segue, possivelmente citando outros movimentos populares] e os diversos maracatus de baque-virado da Vila [nome ilegível], berço do samba; vagamos por muito tempo no limbo dos não-lugares, do não-pertencimento e não acolhimento, por parte da sociedade, de nosso devir revolucionário-insurgente consequencia de nossa vontade de potência..

Por muito tempo ficamos à mercê do autoritarismo superegóico encarnado na figura paterna, recorrendo somente ao seio maternal em sua essência edípica. Hoje, o clarão da aurora resplandece no horizonte.

Nossa luta, que emerge do próprio seio da luta de classes, reivindica o alto e bom som dos estudantes, secretários e faxineiros. E reivindicamos esse direito inalienável de gritarmos e nos expressarmos enquanto tais: estudantes, secretários e faxineiros. É nossa postura de únicos-proprietários que nos permite ultrapassar a barreira das classes e suprir o emprego dos trabalhadores garantindo bitucas e latas de cervejas vazias suficientes, atitude límpida e branda reprimida duramente pela reitoria, aparelho opressor, moralista e católico.

Não nos curvamos! Como o Messias que chega pela porta estreita para a redenção do Homem e também tal qual a nobre fênix, renascemos das cinzas de nossos baseados para acusar, delatar, apontar com o dedo em riste, a hipocrisisa de todos os anti-democráticos, os que querem punir, cercear, policiar; todos os que dizem que não concordam com a nobre e justa não-causa de nossa geração, e nos impedem de tornar nossas vidas grandes obras de arte e grandes narrativas.

Adotando autogestionariamente – pois a autogestão é a gestão do único – uma postura insurgente-revolucionária, lutamos por uma universidade pública e intempestiva, fechada aos fascistas, aberta aos que lutam pelo Bem, pela Vontade, pelos devires, pelos desvios, pela diferença, ainda que a realidade mostre que somos todos cada vez mais iguais

Filhos [rasurado] do mundo, uni-vos!"

O manuscrito se interrompe aqui.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

À Godot

Fomos feitos da espera. E a espera é nossa meta, porque é nossa origem. Nossos pais, um dia, nos esperaram. No ventre originário de todos os universos, enquanto nos esperavam, esperavamos a hora de nascer, ato ao qual responderíamos com o choro.
Talvez por isso fique para sempre o medo da espera. Sabemos que no fim da espera podemos chorar, Na língua portuguesa criamos a saudade, que é um embuste para espera. Gloriosa invenção! Em geral, quando nos encontraos no limite da espera ansiosa, lembramos todas aquelas coisas que no acariciam a memória como seda, fria e leve, uma brisa que nos lembra que a espera também vale a pena, pois somente porque um dia esperamos fomos capazes de armazenar todas aquelas vidas que nos voltam pela saudade.
A espera só tem começo. Não tem fim. Se os fios da espera acabam, devemos, tal qual Penélope, desfazer o emaranhado bordade com a face dos nossos amores. Somente para recomeçar outra vez. Pois a espera é ela mesma, a meta.
Só aos desesperados cabe a esperança. Por isso espera e esperança são coisas diferentes. A esperança foi a última a sair da caixa maligna de Pandora. Mas quem a abriu foi a espera. Por não saberem esperar, Adão e Eva provaram do fruto proibido.
Esperar não leva à inação. Esperar é um propulsor. É a espera que me leva além. Pois quem espera é impaciente. E quem é impaciente se precipita. Quem espera é confiante, não esperançoso. E mesmo que o seja, e desesperado. É de um desespero diferente, é um desespero metodológico. É-se desesperado não porque já não se tem fé, mas porque é o único meio de comprová-la. É o desespero cínico, que se engana somente para se mostrar capaz.
A espera é alheia ao tempo, mas subordinada à intensidade: os dias podem passar como segundos, mas serão os segundos mais dolorosos. Por isso, esse que espera desesperado, faz jus à sabedoria dos antigos segundo à qual ninguém pode ser digno de felicidade, pois essa só existe como hybris. Este, no entanto, não sabe que é feliz. Pois a felicidade nos cabe somente no ponto em que não nos estava destinada. A Justiça é sem nome, e é nesse não-saber da felicidade, vinda da espera, que fazemos jus à magia da Liberdade. "Unicamente conhece um ser humano, aquele que o ama sem esperança"
A espera é a meta, porque é como os ajudantes dos livros de histórias infantis, ou como os bizarros personagens de Kafka, ou como os seres cuja natureza se desconhece nos mundos de Tolkien: são os seres esquecidos no fim da história. Mas continuam em nós, mesmo como esquecidos.
A espera alimenta-se do caráter destrutivo que vive não do sentimento de que a vida vale a pena ser vivida, mas de que o suicídio não vale a pena. A espera é a meta porque ela mesma é uma armadilha. É algo a ser vencido, somente para que esperemos outra vez. Porque toda espera é um ensaio para a espera final.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

On being english...

Thomas Mann, quoted by J.B. Priestley:

"'[...] England's attitude to power is quite other, and incomparably more natural and straight-forward than the German attitude. Both parties understand something quite different by it - it is the same word with a wholly different meaning. To Englishmenpower is in no way the darkly emotional concept as viewed by Germans: power, in English eyes, implies no emotion - the will to power is a German invention - but a function: they exercise it in the gentlest and most unobtrusive manner, with the least possible displau, and safeguarding as much freedom as feasible, for they do not believe that power is a proclamation of slavery, and are therefore not slaves to power themselves"

PRIESTLEY, J. B. This Land of Ours. In: PRIESTLEY, J. B; GIBBS, Sir Philip: GUEDALLA, Philip; MAUGHAM, Somerset; and others. The English Spirit. London: George Allen & Uniwin, 1942.

sábado, 24 de março de 2012

Destrua-me e te devoro!

Bem o disse Saramago: estamos cegos. Usamos perversamente a Razão pois humilhamos a vida. Perdemos o respeito a nós mesmos, pois que perdemos o respeito devido a nossos semelhantes.
A cegueira de que se trata é a cegueira da razão que, mesmo desperta - diferentemente do que pensava Goya - engendrou monstros, raquíticos de fome, obesos de soberba. Fechamos os olhos da piedade, diria o pae de santo Jubiabá. Somos pétreas sombras de algo sem nome. É preciso, no entanto, nomear. Escritos ou não, devemos buscar Todos os Nomes, vivos e mortos.
É preciso viver, despertar do sono mitológico que faz com que nossa vida pareça real. Tudo é faz-de-conta. E deve sê-lo. Daí nossa obrigação em, se pudermos ver, olharmos e podendo olhar, repararmos. E reparar em seu duplo sentido: o reparo visual, do detalhe, das tantas dimensões espaciais possíveis; e a reparação dos atos que cabem a nós.
É preciso viver aquele caráter destrutivo que vê caminhos em toda parte e que de duradouro só a enxerga a própria duração; que tem a consciência do homem histórico, "cujo sentimento básico é uma desconfiança insuperável na marcha das coisas e a disposição com que, a todo momento, toma conhecimento de que tudo pode andar mal. Por isso [...] é a confiança em pessoa".
É preciso destruir a falsa amoralidade, ela mesma uma correção. Destruir as imagens que lhe servem de justificação: o Justo, a Liberdade, o Amor. Destrua-se a falsa descrença na consciência, sempre uma sombra na boca dos bons moços. É preciso destruir, jovens, destruir. Destruir-se.
O desafio não é falar, ter razão, convencer. Convencer é improdutivo.
O desafio é aquele que, no fundo, busca o verdadeiro destruidor, é escrever a mais simples das histórias: a de uma pessoa que vai à procura de outra.
Grandes pessoas pensaram e falaram, agiram, não para quem as quisesse ler ou escutar, mas para quem tinha a coragem de fazê-lo. Foram destruidores rodeados de pessoas, testemunhas de sua eficácia.
Destruamo-nos!
Isso me foi dito. Atreve-te a destruir. Destrua-se para criar a ti mesmo. E faça-o na busca à única coisa que há na vida - além da morte, que estaremos sempre longe de compreender - que é a outra pessoa. Logo ali.  Depois me fale de sua moral amoral. Encoraja-te a ler-me, a ouvir-me, a destruir-me contigo, hypocrite lecteur, mon semblabe, mon frère!


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Qual a importância de um estado?

A moda nao é um fenômeno passageiro. O que é passageiro é simplesmente seu objeto. Assim sendo, a moda também se expressa no campo do pensamento. Existem autores da moda. Atualmente, parte desta moda gira em torno da aura mística de Walter Benjamin, aquele trágico crítico assimilado que tantos insistem em transformar em rabino. Walter Benjamin, assim como seu amigo e companheiro Gershom Scholem, jamais foram sionistas. Benjamin recusou-se a partir para Jerusalém e Scholem, emérito professor da Universidade Hebraica, nunca defendeu o sionismo, se recusando mesmo a aceitar o hebraico como língua oficial de um possível Estado judeu, pois o hebraico, para ele, é uma língua consagrada, sacra.
É de se pensar o motivo das recusas. Benjamin viveu sob um regime político no qual o Estado deve ser apreendido como um conceito que viu, nesta época, a identificação entre conhecimento e verdade. Sob o regime totalitário, o Estado pode, pela primeira vez, realizar-se como ideal. 
Pois o conhecimento, nos diz Benjamin, se relaciona ao conceito, mas a verdade está contida na palavra. Pela primeira vez, o Estado descolou-se do plano conceitual, para realizar-se como pura palavra, nome puro que encerrava as possibilidades últimas de sua própria composição. Por isso tantos vêem Benjamin como um místico, um rabino e, graças ao seu 'caráter destrutivo', um anarquista. Benjamin nao foi, em realidade, nenhum destes, mas isto nao vem ao caso. O que importa aqui, é que foi por essa identificação entre palavra e conceito, verdade e conhecimento, que Benjamin enxergou o sem-número de atrocidades advindas da concepção compartilhada por direita e esquerda. O Estado sob o qual vivia, era um Estado na acepção total da palavra. Encerrada em si mesma, à palavra nada escapa, ao nome - pois palavra e nome sao um e o mesmo - tudo é hermético. Esse é o risco político da luta que se trava contra a autoridade e o poder, recair numa linguagem que reproduz, pela verdade contida no nome, a lógica de uma dominação intrínseca.
O Estado que causou a morte de Benjamin, que causou o extermínio de pessoas aos milhares - independentemente do por que, mortes humanas nao se resumem à contabilidade ou à justificativa; os mortos nao se levantarão para falar - foi o Estado que herdamos. A própria realização da identidade entre conceito e nome poderia ter sido o suficiente para que abolíssemos, de forma radical, a nomenclatura daquilo que confundimos com pátria, nação, ou lar. Mas a verdade foi bem diferente. Exatamente por essa capacidade totalizante e totalitária do Estado, percebemos a total dependência que possuímos sob esta mesma forma de organização sócio-política. O Estado se tornou necessário, e se a figura lógica seria a de um mal necessário, vivemos bem o contrário e pensamos que é um bem necessário. Bem nao somente no sentido do Bom, mas no sentido do bem que se detém, do bem material. Nosso bem material é de tutela do Estado, e na caótica organização à qual nossos bens sao submetidos pela administração estadual, podemos lavar as mâos da responsabilidade do desenrolar histórico. Tudo se torna forca do acaso. O Estado se tornou uma grande poltrona reclinável para a sociedade. De início, pode ser incômoda, as costas se cansam do ângulo reto que acaba por nos paralisar, mas com a pressão certa, posta no lugar correto, ela nos abraça e nós podemos dormir tranquilos.
Ora, nao existe Estado que preconize o bem-estar. O Estado, seja ele qual for, é e só pode ser compreendido em nossos dias, como o requisito formal a uma política que atua na lógica da oficina mecânica: partes sobressalente sao remendadas e trocadas para servirem a outro propósito. Se nada mais pode ser aproveitado, elas sao descartadas imediatamente.
A lógica de um Estado, seja ele qual for, será sempre a da reprodução daquilo que Benjamin pode perceber com perspicácia: a lógico intrínseca de uma dominação que começa pela linguagem, pelo nome. Por isso Benjamin virou seus olhos à história. Pois era essa mesma história, sob a sombra do historicismo e da necessidade de se descobrir a lógica do desenvolvimento histórico fato por fato, 'tal qual aconteceu', que legitimou a dominação da qual o Estado moderno se serviu.
A história racional, pretensamente neutra ou secular, mitologizou-se. A historia do homem tornou-se a rua de mao única para uma teleologia prescrita nas religiões institucionalizadas: na chegada do Messias pela porta estreita, na segunda vinda do Cristo, ou na conversão do mundo aos ensinamentos do único Profeta de Deus, nas regras e nas proibições, no tabu e no jejum.
Foi essa mesma superação do mito pela religião que serviu ao Estado, pautado pelo Capitalismo, para que este se tornasse ele mesmo um religião.  O Estado, pelo Capitalismo - nao há Estado sem Capitalismo - sacralizou-se, tornou-se uma certeza tao clara quanto a existência de Deus ou a vida após a morte, isto é, certeza nenhuma, senão dogma.
Sob essa sacralizacao, a história transforma-se, assim como a religião, em tabu, ou seja, em mito. Religião e História caem para o domínio da natureza sob a qual nao há escapatória. É esse mesmo problema que o Oriente Médio, em nossos dias enfrenta. A promessa de um Estado prometido por Deus é a confirmação do estatuto mitológico falseado de uma realidade social que, dada pelo Capitalismo, é de foro econômico e consequentemente, dominador.
Nao há Estado que sirva ao povo. Um Estado serve ao povo na medida de seu próprio interesse, na garantia de sua reprodutibilidade. A ideia de uma Terra Prometida nao tem relação alguma com a necessidade de uma território nacional. Essa era a questão que dizia respeito a Benjamin e Scholem no tocante à Palestina. A ideia de um Estado Judeu é inconsequente e autoritária porque se impõe pela nomeação de um Justo eleito. É tao absurda quanto nos pautarmos pela brincadeira de que 'Deus é Brasileiro'. Porque o Estado é em si mesmo um desrespeito à religião enquanto organização de uma doutrina histórica de crenca. Porque o estado vem para tomar o lugar da religião, para tornar-se, ele mesmo a religião vigente. O falseamento entretanto, recorre no fato de que, por trás de sua pretensão totalizadora, o Estado mascara-se pelo sistema linguístico-cultural daqueles que o cultuam. O estado vive da fagocitose, vive de devorar o Estado mais fraco, sorvendo-se de sua energia econômica para fortalecer-se.
Por isso, para a Sociedade Ocidental, o Estado Laico foi uma conquista, ainda que nao sem problemas, para o pensamento e as formas de vida. Ele garante a situação necessária para a superação da problemática cultural. Nao só, um Estado verdadeiramente laico, suprime o apelo à religiosidade como fonte de Justiça e justificativa política. Por isso o Reino Unido foi, perspicazmente, contra a formação de Israel. 
Sem colocar a necessidade de um território nacional em questão, porque esse me parece um apelo justo, a justificativa de Israel se dá sob a ótica daquela que os países Ocidentais põem e questão desde o fim da Segunda Guerra. A necessidade de um território nao por questões de organização sócio-cultural e mesmo econômica, mas por questões de destino manifesto. nesta esteira, incorrem hipocritamente no mesmo discurso de que acusa seus vizinhos inimigos: domínio regional. É absurdo que o Islam se exija um mundo sem fronteiras territoriais, mas nao é absurdo que se organize um país porque lhe foi prometido por Deus. Nao só um país, na verdade, mas um Estado, um Estado real, forte, mitológico, porque na acepção de um Estado judeu para o Povo Eleito, confunde-se - talvez o propósito seja misturar propositadamente - o caráter falseador do Estado moderno, posto em questão desde o fim da Guerra.
Neste movimento, uma jornalista ou coisa qualquer é capaz de utilizar este mesmo argumento como desculpa para criticar, com uma ironia deselegante que lhe deve ser bem característica, da 'Utopia' palestina de um território árabe. Mas até onde se pode pensar, a ideia do território judeu unificado foi durante muito tempo uma utopia.
Claramente, a pseudo-qualquer coisa desconhece a diferenciação entre utopia e utopia concreta, esta última pensada, inclusive, por outro intelectual judeu alemão - porque é importante dizermos que esses intelectuais da Escola de Frankfurt por exemplo, eram judeus, mas também alemães. Ironiza, também o domínio palestino do marketing, que os levou inteligentemente a banir aos poucos a sigla OLP. Como eu disse, os dois povos sao face da mesma moeda. O argumento desta - como chamá-la? nao consigo classificá-la como jornalista, analista política e muito menos como pensadora -  pautam-se por essa desculpa mitológica da terra prometida, da promessa de Deus, quando a questão real envolve o interesse que é próprio ao Estado, nao só o Estado Israelense, mas qualquer Estado. Esta mulher se serve, se apropria dos termos clichês de quem ainda nao conseguiu se desligar das aulas de História do colégio, de chavões como 'eternos inimigos de Israel' e de uma aparente conspiração mundial contra seu povo. 
Os judeus nao deveriam precisar - e eu creio que uma elite intelectual de fato nao precise - deste repertório exaustivo de um Holocausto sem fim no qual ninguém, no mundo, foi inocente a nao ser os judeus. 
Trocando em miúdos, quando o mundo contemporâneo revê a problemática intrínseca do Estado nacional e do Capitalismo, porque esse pendor tao grande cada vez mais forte de Israel à detenção de um Estado? Porque o argumento é o mesmo do Islamismo: o direito divino, a mitologia do destino que concretizará, sem escapatória, a sacralizacao de todo um povo frente a outros.
Nao contente com isso, a mesma redatora contra-argumenta o pedido da Autoridade Palestina ao reconhecimento do Estado Palestino na ONU. Ora, torna-se tao errado agir conforme as regras de um jogo mais ou menos civilizado, quanto lutar fisicamente, por meio da resistência, contra aqueles que se consideram inimigos reciprocamente.
No fim, isso tudo parece ser consequência, pelos dois lado, da História transformada num grande Tabu, na mitologizacao e inescapabilidade da teleologia imposta por esse grande Mito nos quais se tornaram as religiões.
Nomes nao sao necessários. Mas a quem interesse, o artigo da mulher citada acima, encontra-se na Revista Shalom do dia 19 deste mês. Na mesma revista relata-se um artigo sobre o pendor anti-semita de 20% da população alemã, fator que se repete com outras cifras pela Europa graças às origens históricas da Inquisicao.
Seriam inúmeros os argumentos possíveis para combater esses tipos de juízos históricos de valor, mas sao exatamente estes juízos que reproduzem uma linguagem burra que nao resolve problema algum. A trajetória da justificativa histórica no que diz respeito a Israel está intimamente ligada a uma resposta autoritária porque se amarrou intimamente ao problema mitológico da Schulde.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

STF

O clamor por Justiça só pode ser compreendido, num país como nosso, em razão inversamente proporcional ao desenvolvimento social.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Toda Condição Ilimitada da Vontade

"Toda condição ilimitada da vontade leva ao mal. Ambição e luxúria são expressões ilimitadas da vontade. Como os teólogos sempre perceberam, a totalidade natural da vontade deve ser destruída. A vontade deve ser estilhaçada em um milhar de pedaços. Os elementos da vontade que têm proliferadotão grandiosamente limitam-se uns aos outros. Isso dá origem à limitada vontade terrestre. Não é objeto da vontade seja o que for que vá além destes elementos e chame pela (suprema) unidade da intenção; não requer a intenção da vontade. A oração, entretanto, pode ser ilimitada",

Walter Benjamin - 1918.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Licença Poética II

"Los liberales o progresistas tontos me tendrán por reaccionario y acaso por místico, sin saber, por supuesto, lo que esto quiere decir, y los conservadores y reaccionarios tontos me tendrán por una especie de anarquista espiritual, y unos y otoros, por un pobre señor afanoso de singularizarse y de pasar por original y cuya cabeza es una olla de grillos. Pero nadie debe cuidarse de lo que piensen de él los tontos, sean progresistas o conservadores, liberales o reaccionarios".

UNAMUNO, Miguel de. Mi Religion. In. Autodialogos. Madrid: Aguliar; 1959.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Pelo presente


"É pura inércia mental supor que, à medida que avança a História, é maior o espaço para que o homem se realize como indivíduo.

Não! A História está cheia de retrocessos e é certamente a estrutura da vida em nossa época o que mais impede o homem de viver como pessoa. - José Ortega y Gasset. A Rebelião das Massas.
Que a História seja pelo presente. Não pela triste memória que é o passado, nem pela ínfeliz projeção que é o futuro.

Sobre Fé e Razão

É muitas vezes lugar comum a ideia de que a Religião seja, antes de tudo um atraso aos homens. A Ciência - e antes dela a Filosofia, sua mãe - prova que o conhecimento racional destitui a certeza dos dogmas - vejam bem, dogmas, e não verdades - religiosas. A investigação, a dúvida metódica e a tecnologia suspendem a necessidade de qualquer crença. O que nos parece mais certo é sermos ateus. Não só, críticos de toda e qualquer religião. Como querer seguir, racionalmente, uma instituição que perseguiu, dominou e exterminou milhares de pessoas ao longo da história?
Poder-se-ia discutir a questão política que envolve o problema da religião. Mas não é o objetivo aqui. O que aqui se pretende discutir é a confusão feita entre sistemas de crença e instituições políticas. Pois a crítica à Religião leva muitas vezes a uma pretensa descrença em torno do sistema simbólico - mitológico para alguns, e portanto, irreal - sobre o qual as instituições religiosas se resposabilizariam. Ora, a primeira coisa que se deve ter em conta é que as religiões são formas organziadas politicamente pelos homens para dar, a princípio, coesão à uma ordem raiz simbólica que organiza e explica o mundo. Não obstante, a instituição não é a fé em si. Quer dizer, a Religião instituída não exprime a verdade total daquele sistema simbólico que representa, mas somente a verdade legal. Pois a Religião, como qualquer instituição humana, exige sistemas legais para seu funcionamento. Instituir algo significa, antes de tudo, outorgar a uma doutrina um princípio de legalidade, tornando-a, portato, autoridade. Toda instituição é uma instituição de poder e consequentemente de direito.
Não é essa instituição, entretanto, que exprime a verdade. O que para muitos vem da voz do douto, é na realidade um suspiro que se ouve somente no eco do primeiro e do último expirar. A verdade das religiões reside para além dos textos e doutrinas, pois remete diretamente à materialidade do ser, ao que mais nos define: vida e morte. A confusão em enxergar o que há de verdade nos sistemas simbólicos vem da desgraçada necessidade do homem de racionalizar experiências sobrenaturais, em dominar a natureza e subjuga-la, em desejar demais um fruto proibido, que nos leva a afirmar uma verdade eterna ou pior, única, tornando-a o ponto de apoio de nossa vida social. Pois é a instituição dos sistemas simbólicos de crença o pico e, ao mesmo tempo a base de um plano de solidificação da sociedade humana.
Na crítica política à história das instituições religiosas, os homens deixaram de ver, por baixo do solidéu, do yarmulke ou da shador, o pendor agônico de tradições perdidas. Pois a religião instituída é, antes de tudo, um sinal de que o que deveria ser passado de boca em boca, tal qual o nome secreto suspirado ao ouvido do recém-nascido, ou o passo das garças expressos nos movimentos de uma arte marcial, começa e tornar-se história. Não à toa, os verbos proferidos por nomes das Igrejas são sempre conjugados no passado.
A crença, e principalmente, a fé, é tão inerente ao ser humano quanto a dúvida. Cremos por que duvidamos e vice-versa. Por isso, crer significa querer crer e acreditar em algo significa querer que algo exista. "Creio! Vem em socorro à minha falta de fé"; como o pai do menino epilético salvo por Cristo. Essa é a imagem da fé.
 É uma coisa seguir a homens que equacionam e matematizam fé e razão como meio de dominar. Mesmo assim, dentro das próprias instituições há homens brilhantes como Santo Agostinho, Santa Tereza, Avicena, Averróis ou Sidartha. Pois esses homens e essa mulher, trágica e iluminada, souberam por a vida em frente a tudo. E fizeram de suas vidas, a imagem da nossa vida.
Crer é somente um risco quando nos cega a razão. E a razão é risco tão grande quanto, quanto nos cega a crença. Pois crer, mesmo que seja somente a crença num fim inevitável e total, é, antes de tudo crer. O paradoxo nunca se resolverá. Eleger a razão como mestre de nossa dita humanidade é correr o risco de cegar todo um mundo, que vaga á, como zumbi, por suas vidas cada vez mais longas e cada vez mais sofridas. A tecnocracia é a religião de nosso século, como foi do século passado. E exatamente como criticam as religiões, a tecnocracia não vem fazendo mais do que dominar e explorar, jogando homem contra homem, irmão contra irmão, mulher contra marido.
Irracionalista! - direis. De forma alguma. Crer não limita a razão. Simplesmente a põe em seu lugar. Pois a razão explica a História e os fatos humanos, e alinha inúmeras vidas de homens, mas não compreende a vida, porque essa não é para ser entendida, senão vivida.
"Y si me preguntara cómo creo en Dios, es decir, cómo Dios se crea en mí miso y se me revela, tendré acaso que hacer sonreír, reír o escandalizarse tal vez al que se lo diga. Creo en Dios como creo en mis amigos, por sentir el aliento de su cariño y su mano invisible e intangible que me trae y me lleva y me estruja, por tener íntima conciencia de una providencia particular y de una mente universal que me traba mi propio destino. Y ele concepto de la ley - !concepto al cabo! - nada me dice ni me enseña". - UNAMUNO, Miguel de. Del Sentimiento Trágico de la Vida. Buenos Aires; Longseller:2004.